Ingênuo ou corajoso? Como Boulos pretende financiar seus planos para a prefeitura de São Paulo?
Analistas veem propostas para combater efeitos da pandemia de covid-19 nas áreas da saúde e economia na capital como positivas, mas apontam falta de clareza em financiamento
Com o crescimento da candidatura no segundo turno em São Paulo, aspectos menos comentados do plano de governo de Guilherme Boulos (PSOL) como o detalhamento de fontes de financiamento para novos gastos e a reforma da Previdência municipal ganharam a atenção da mídia, eleitores e especialistas em contas públicas nessa reta final das eleições. Na semana passada, em sabatina no jornal O Estado de S. Paulo, ele recebeu fortes críticas ao dizer que a Previdência do serviço público é deficitária porque não se faz concurso. Para equilibrá-la, sugeriu mais contribuição, ou seja, novas contratações pelo Estado. “Então você tem mais gente se aposentando, virando inativo para receber na previdência e, como não se faz concurso, você tem menos gente contribuindo para a previdência pública”, disse o candidato. Após a repercussão negativa, Boulos gravou um vídeo para esclarecer que não defende o equilíbrio da previdência por meio de novas contratações e que a maneira com que se expressou “foi tirada do contexto da pergunta”.
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O passo em falso serviu para jogar luz no que é considerado por alguns analistas ouvidos pelo El País o “calcanhar de Aquiles” da campanha de Boulos, o planejamento econômico. O programa de Governo do candidato do PSOL à prefeitura de São Paulo está dividido em 24 temas, que vão da assistência social à zeladoria urbana, mas que possuem um eixo central de atenuar os impactos da pandemia na economia e na saúde. Boulos destrincha em seu plano investimentos na estrutura médico-hospitalar nas regiões periféricas e reforço nas medidas de prevenção em ambientes públicos e coletivos. Além disso, propõe uma Renda Solidária, uma espécie de renda básica, para cerca de um milhão de pessoas que já viviam em situação de vulnerabilidade na capital paulista e agora atravessam um momento ainda mais complicado com a crise sanitária. Para combater o aumento do desemprego acelerado pela pandemia de covid-19, o candidato do PSOL apoia a criação de frentes de trabalho para serviços de zeladoria em toda a cidade, empregando, sobretudo, pessoas que moram nas próprias regiões e estão sem emprego ou renda e menciona, ainda, medidas de apoio aos pequenos comerciantes, trabalhadores informais e de aplicativos.
Para isso tudo, ele vai precisar de bastante dinheiro. Sua campanha diz que a Prefeitura dispõe dos recursos, enquanto seu adversário em busca de reeleição nega. E especialistas ouvidos pela reportagem estão com dúvidas sobre o que foi apresentado pelo psolista. Avaliam que as prioridades elencadas por Boulos são importantes e as medidas factíveis, mas há ainda pontos que precisam ser ajustados e detalhados, como as fontes de financiamento para tirar do papel algumas das ideias propostas. Discordam em uníssono, no entanto, sobre a forma que o candidato pretende conduzir o tema da Previdência de São Paulo, que possui hoje um rombo de mais de 5 bilhões de reais.
Renda solidária
Boulos promete uma Renda Solidária para cerca de 970.000 famílias em que o valor do benefício ficaria entre 200 e 400 reais, gerando um impacto orçamentário de 3,1 bilhão de reais por ano. O candidato aposta em três frentes para bancar o programa: uma é usar parte de recursos que, segundo ele, estão parados hoje no caixa municipal. Boulos diz que há disponível 17 bilhões de reais nos cofres, de acordo com dados que recebeu de auditores e representantes do Tribunal de Contas do Município (TCM). Outra frente seria uma atuação mais efetiva na cobrança da dívida ativa do município, atualmente de cerca de 130 bilhões . E, por fim, enfrentar os “esquemas e máfias municipais”, que não há um valor estimado.
O economista Marco Rocha, professor da Unicamp e um dos responsáveis pelo plano de governo do candidato do PSOL, estima que a prefeitura tenha livre para investimento e contratações pelo menos 5 bilhões de reais no início de 2021. “A projeção do que o pessoal do Tribunal de Contas tem falado para a gente é que sobra livre cerca de 17 a 19 bilhões em caixa, sem destinação predeterminada, de 5 a 7 bilhões”, diz Rocha. “Isso já excluído custeio com folha de pagamento, dinheiro destinado a fundos específicos, contratos assinados que vencem na próxima gestão e eventuais restos a pagar”, afirma. Ele diz que esse caixa estará disponível para a gestão que vem por uma série de fatores: os efeitos da pandemia na arrecadação foram graves mas menores do que o estimado inicialmente; muitos gastos previstos para este ano tiveram de ser represados ou diminuídos por causa da covid-19; problemas de execução orçamentária como projetos que não andam conforme previsto, além de uma cultura das últimas gestões petistas e tucanas de responsabilidade fiscal com as contas do município.
Para Marcelo Marchesini, professor de Gestão Pública do Insper, a proposta da renda auxiliar é bem-vinda para ajudar a população mais necessitada, mas as fontes orçamentárias, apresentadas por Boulos, possuem problemas. “O dinheiro em caixa pode ter uma disponibilidade maior do que o usual, mas não significa que esse dinheiro já não tenha uma destinação estabelecida pelo orçamento. Ele apresentou um plano de Governo no fim de agosto, no momento de elaboração desse orçamento”, explica Marchesini.
Em relação a proposta de cobrança da dívida, o professor também vê dificuldade na execução da medida. “É necessário esse esforço de aprimorar a cobrança da dívida ativa, mas não se pode contar com essa disponibilidade do orçamento já no ano que vem”, afirma. Para Marchesini, para que a Renda Solidária saia do papel caso o candidato do PSOL seja eleito, será necessário um conjunto de esforços e ajustes. “Talvez o valor do benefício precisará ser menor, para um público também menor do que o sugerido. Mas é uma proposta muito importante, que acabou aparecendo em diferentes formatos o plano de vários candidatos, menos do Bruno Covas”, afirma.
“A maioria das coisas ali envolve aumento de gastos”, afirma a consultora econômica Zeina Latif. “Só que a gente está falando de um prefeitura com um déficit previdenciário enorme, queda de arrecadação e que no ano que vem tem que retomar os pagamentos para a União que ficaram congelados este ano por causa da pandemia”, diz. Ela questiona a fonte de recursos apresentada pela campanha do PSOL. “Por que tem o dinheiro em caixa? Tem que atender a Lei de Responsabilidade Fiscal e deixar recurso para os gastos já contratados que vão estourar para o próximo mandato, então me preocupa que ele esteja falando de um recurso que não está disponível”, afirma a ex-economista-chefe da XP Investimentos. “Mesmo que estivesse, estão falando de criar uma despesa corrente, fixa, com recurso específico e transitório. Mesmo que fosse uma despesa temporária, um investimento, esse dinheiro não está lá de verdade.”
A economista Monica de Bolle, pesquisadora sênior no Peterson Institute for International Economics e professora na School for Advanced International Studies na Universidade Johns Hopkins, em Washington, concorda que a deficiência do plano de Boulos na questão da Renda Solidária é mostrar mais detalhadamente os números para ancorar melhor a questão das fontes de financiamento. “Mas, no que diz respeito aos princípios, por exemplo, de aumentar a carga tributária das pessoas mais ricas para fazer uma espécie de redistribuição municipal, esse princípio está absolutamente correto”, afirma. Taxas e impostos pagos pelo estrato mais rico da população e por instituições financeiras deverão ser ampliadas em Governo Boulos. “Uma reforma tributária, baseada na proporcionalidade e na progressividade da cobrança de impostos”, diz o projeto.
O polêmico plano para a Previdência
De Bolle critica, no entanto, a forma como o candidato do PSOL pretende enfrentar o rombo da Previdência. Em seu plano de Governo, Boulos fala em enviar um Projeto de Lei à Câmara, para revogação da Lei 17.020/2018, do Sampaprev, a reforma da Previdência aprovada no fim de 2018, que aumentou a alíquota de contribuição dos servidores de 11% para 14% e a previdência complementar para entrantes com benefício acima do teto do INSS.
Segundo De Bolle, não há como diminuir o rombo com mais receitas só cortando os gastos. “Algo deficiente do plano de Boulos é o que fazer com a Previdência do município. Não tem como escapar de uma reforma. Precisa dar conta do desafio direito, que é transformar a previdência sustentável”, sustenta. Marchesini concorda que a Previdência é hoje um problema expressivo e crescente da prefeitura. “Se ele quiser recursos disponível para programas como o da transferência de renda, não dá para deixar tudo como está. Não precisa ser uma proposta radical e nem de revogar para o que era antes”, aponta. Zeina Latif concorda. “Tem que ter diagnóstico. Me parece tão ingênuo… Acho que ele não estava preparado para ir para o segundo turno e não está com um programa tão coeso. Quando você é um candidato nanico, é normal trazer grandes temas, propostas, para arejar o debate, sem aquela preocupação da execução disso na ponta do lápis.”
O candidato do PSOL confia nas negociações com o Legislativo. “Essa é uma ideia que vamos levar para a Câmara e está aberta a discussões, não é algo fechado”, afirma Rocha em nome da campanha de Boulos. Ele diz que a reforma feita tem o mérito de ajudar a estabilizar o crescimento do déficit, mas acredita que o ajuste penalizou mais os servidores que ganham menos e isso deve ser resolvido. “Temos que discutir como tornar esse gasto sustentável sem gerar mais desigualdades.”
O economista defende a polêmica contratação de funcionários pela prefeitura não só como forma de ajudar a estabilizar o déficit da Previdência municipal, mas como fundamental para expandir e melhorar os serviços públicos prestados à população. “Você parar de contratar, e a prefeitura parou faz anos, pressupõe que não precisamos expandir e melhorar, o que está incorreto. A população cresceu e precisa de mais atendimento, de mais qualidade, atenção: estamos falando de professores, profissionais da saúde, segurança, é uma diversidade muito ampla de serviços em que falta gente”. Para ele, a terceirização irrestrita agrava o déficit previdenciário. “É uma contribuição que vai para o INSS ao invés do regime especial municipal. Isso tem criado um problema de arrecadação muito grande. Com a contratação direta você valoriza um serviço público de qualidade e ajuda no equilíbrio. Com arrecadação e um equilíbrio maior entre a massa que trabalha e a massa aposentada nos quadros da prefeitura, mais estável fica a trajetória das contas”, diz.
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