Cota para mulheres impulsiona candidaturas à vice, mas homens seguem no controle das cabeças de chapa
Especialistas alertam que estratégia é usada para que financiamento destinado à candidatura feminina acabe sendo utilizado, na verdade, pelo cabeça de chapa masculino
As mulheres são há anos a maioria da população e do eleitorado brasileiro, mas continuam sendo minoria na política, nos espaços de poder e nas tomadas de decisão no Brasil. Apesar das eleições municipais de 2020 terem registrado um recorde na quantidade de candidatas na disputa, 187.023 em todo o país — contra 158.450 das eleições passadas ―, o número representa ainda apenas um terço das candidaturas (33.6%), muito aquém da paridade entre homens e mulheres desejável. O avanço na comparação com o pleito municipal de 2016, segundo especialistas, pode ser principalmente um reflexo dos incrementos na legislação de cotas eleitorais, que prevê pelo menos 30% de candidaturas no partido para cada sexo. Criada em 1997, a lei começou efetivamente a funcionar nos últimos anos, quando passou a explicitamente determinar o preenchimento dessas candidaturas femininas.
As mulheres continuam, nestas eleições, concentradas proporcionalmente nas vagas para vereadoras. O maior avanço das candidaturas femininas foi, entretanto, para ocupar o cargo de vice-prefeita. Em 2016, elas representavam 17,62% do total de candidatos ao posto de vice da chapa e, em 2020, pularam para 21,3%. Passaram de 2.988 candidatas para 4.200. Uma brecha na nova regra eleitoral pode ajudar a explicar a proliferação das vices. Há dois anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) consolidaram o entendimento de que no mínimo 30% do fundo eleitoral destinado a cada partido deve ser gasto em candidaturas femininas.
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“Como os partidos têm dificuldade de colocar 30% dos dinheiro em mulheres, uma forma de fazer com que essa verba conste em uma candidatura feminina é no cargo de vice de um cabeça de chapa masculina para a prefeitura. No fim, o dinheiro vai para o homem. Os partidos sempre possuem artimanhas, o que explica parte desse fenômeno”, diz Hannah Maruci, doutoranda em ciência política pela USP e co-realizadora da Tenda das Candidatas, um projeto que dá atendimento voluntário à candidatas e promove aulas de formação política.
Marina Barros, uma das diretoras do Instituto Alziras, cuja missão é ampliar e fortalecer a presença de mulheres em toda sua diversidade na política brasileira, concorda que o aumento do número de candidatas a vice-prefeitas é uma estratégia para sugar parte da verba das mulheres para candidaturas masculinas. Ela pondera, no entanto, que existem outros fatores. “Os partidos perceberam também que ter uma mulher na chapa é interessante para aumentar a competitividade e a representatividade. E vemos isso para além da prefeitura. Como foi o caso agora das eleições americanas, com a Kamala Harris”, diz. Mulher e negra, a senadora da Califórnia fez história e se tornará, no próximo ano, a primeira vice-presidenta dos Estados Unidos.
“De alguma maneira, mesmo sendo estratégia dos partidos, estar na posição de vice-prefeita não é de todo ruim para a construção de capital político da mulher para tentar depois se candidatar à prefeitura. O desafio é que elas se fortaleçam em agendas que não levem o estigma do primeiro-damismo, de assistência social e cuidados. Segundo uma pesquisa que realizamos, 13% das prefeitas eleitas nas eleições anteriores tinham sido antes vice-prefeitas”, afirma.
Enquanto as mulheres tentam aumentar pouco a pouco a participação na política brasileira, a candidatura de mulheres à prefeitura caminha em marcha lenta. Nas últimas três eleições a porcentagem de concorrentes femininas se manteve estável e representou em média 13% do total de candidatos. Atualmente, o país tem apenas 649 prefeitas no cargo, enquanto 4.915 Executivos municipais são chefiados por homens. Mas por que a presença delas cresce em ritmo tão lento?
Os motivos e as barreiras enfrentadas pelas mulheres para acessar espaços são vários. Para começar, há um componente social, de estereótipo de gênero, forte, segundo explica Maruci. “Há uma imagem de que a mulher não seria boa para a política, o que é um machismo estrutural presente na sociedade”, explica. Existe também uma resistência grande dos próprios partidos. “Ele querem manter no poder quem sempre esteve lá: os homens brancos. E acabam apostando no candidato que tem mais chance, os que já foram eleitos alguma vez, que já estão nesse ciclo de poder. E as mulheres que, em sua maioria estão de fora, não conseguem entrar”. Nas prefeituras, segundo a cientista política, é ainda mais lento o aumento de participação feminina, porque a cota de 30% de candidatura reservada às mulheres não se aplica na eleição majoritária, neste ano para prefeito e vice-prefeito.
Apesar das pautas feministas, de igualdade de oportunidade e espaço terem movimentado as ruas e os debates do Brasil nos últimos anos e gerado alguns avanços em empresas, no mundo político pouco mudou. “Parece haver um descasamento entre o empoderamento feminino nas empresas e na política, que mostra que a estrutura partidária é capenga e muito machista”, explicou Alberto Bueno, da consultoria Concórdia ao repórter Afonso Benites.
Para além das dificuldades do ambiente institucional, Barros, do Instituo Alziras, explica que para que as mulheres consigam se tornar competitivas nas eleições são necessários três elementos: tempo, recurso e rede de contato. “Todos eles foram atingidos de forma desigual para as mulheres frente à pandemia de coronavírus. Inúmeras pesquisas mostram como elas foram muito mais sobrecarregadas com o cuidado das crianças e enfermos. Neste ano, elas foram definitivamente privadas de ter tempo para se candidatarem e de trabalhar nas suas candidaturas, o que dificultou ainda mais a ampliação da candidatura feminina”.
As mulheres também sofrem violência para entrar e permanecer nesses espaços políticos. “As prefeitas revelam que sofrem muito por serem mulheres. Assédio, diminuição das falas, uma série de violências que vão minando a vontade de estar e seguir nesse espaço”, explica Barros.
Representatividade de mulheres negras é ainda menor
No caso das mulheres negras a desigualdade de oportunidades para entrar na política é ainda maior. Apesar de serem 27% da população do país, as mulheres negras governam apenas 3% dos municípios brasileiros e correspondem a 5% das pessoas eleitas nas Câmaras de Vereadores e nas Assembleias Legislativas Estaduais e 2% na Câmara de Deputados. “Elas estão numa situação de menos acesso a tudo. Escolaridade, capital financeiro, mercado de trabalho. Elas são ainda as mais afetadas pela violência de gênero. Elas ficam prejudicadas em todas as esferas da competitividade”, diz Barros.
Na avaliação de Hanna Maruci, eleger mais mulheres é uma questão de justiça, uma tentativa de aproximar a população e seus representantes. “Se eu não me vejo lá eu não acho que posso estar lá. Não ter mulheres negras, por exemplo, só reproduz isso. E há ainda uma questão de perspectiva para defender políticas públicas voltadas para a mulher. O homem pode defender causas das mulheres, mas ele não tem a vivência, o que é menos eficaz”, afirma.
Candidaturas laranjas e fictícias
Enquanto os movimentos feministas lutam para que a composição dos representantes políticos sejam mais proporcional à composição da população, há uma frente política que critica a existência da cota de 30% destinada à candidatura de mulheres. Argumentando que o mínimo exigido gerou muitas candidaturas femininas laranjas ou fantasmas, em 2018, com o intuito de desviar o dinheiro para outros fins. “Insinuando que a cota que já é pequena seja retirada. Isso é uma inversão. O que precisamos é aprimorar o funcionamento da lei não retirá-la”, diz a co-realizadora da Tenda das Candidatas.
Barros concorda que o discurso de acabar com as cotas é sem sentindo e ultrapassado. “Os partidos vem avançando em coibir esse tipo de ação, assim como TRE e o ministérios públicos. A punição agora é de cassação de chapa. Trouxeram uma punição para realmente dar medo e inibir”, diz.
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