Candidatos acumulam terras públicas e práticas violentas no campo

Políticos que vão às urnas no domingo informam ao TSE propriedades em áreas devolutas; lista inclui latifundiários e donos de várias fazendas. Alguns coincidem histórias de crimes ambientais e trabalho escravo

Desmatamento no Mato Grosso para preparar terra para o cultivo.Reuters Photographer (Reuters)

A fronteira entre o público e o privado na Amazônia é fluida. Terras que pertencem à União vão parar na mão de fazendeiros. Entre eles estão os políticos: as declarações de bens entregues à Justiça Eleitoral por candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador mostram que alguns não se constrangem em informar a propriedade de terras públicas. O De Olho nos Ruralistas mostrou em outra reportagem exclusiva desta série no EL PAÍS, a incidência de terras da reforma agrária nas mãos de políticos que, no domingo ou nas eleições adiadas no Amapá, concorrem a vagas nos 5.570 municípios do país. Mas o fenômeno é mais amplo: especialmente na Amazônia, alguns deles informam oficialmente que suas terras não são tituladas. Para completar, muitos protagonizam histórias relacionadas a crimes ambientais, conflitos no campo e exploração de trabalho escravo.

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Isso não ocorre apenas no caso de posseiros autênticos, camponeses na luta pela sobrevivência com a pretensão legítima de se candidatarem a cargos públicos. Mas sim porque as terras da União entraram nesse mercado muito particular, que inclui políticos milionários. Na capital brasileira da pecuária, São Félix do Xingu (PA), um dos símbolos da devastação no país, pelo menos 90% das terras são públicas, conforme dito à reportagem, em Xinguara (PA), por um tabelião que foi responsável pelo cartório do município vizinho. Isso significa que as terras da União não deveriam estar no mercado de terras — ou nas declarações de bens dos políticos. Ao consultá-las, porém, constata-se que não somente políticos de várias regiões do Brasil declaram propriedades rurais no município; alguns confirmam que as terras são públicas.

O comerciante Reis Evaristo Reis (Cidadania), o Du Reis, informou possuir o direito de posse de um latifúndio de 2.179 hectares “de uma gleba de terras devolutas”. Devoluta diz respeito a terras públicas, devolvidas ou a serem devolvidas ao Estado. Preço: 1 milhão de reais. Quase a metade de seu patrimônio de 2,29 milhões de reais. Todas as informações acima — e as similares, abaixo, sobre bens dos candidatos — estão registradas no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Outros 270.000 reais de Du Reis vêm de suas 150 cabeças de gado. Um de seus oponentes, o pecuarista Marcelo Batista Ferreira (PT), tem nada menos que 7.650 hectares em terras registradas como “direitos de posse”, e 4.098 cabeças de gado. O conjunto de bens soma 1,4 milhão de reais. Em 2003, fiscais do Ministério do Trabalho flagraram treze pessoas em regime de trabalho escravo em uma das fazendas de seu pai — hoje de sua propriedade.

Mas o histórico de ambos é ameno em relação àquele do ex-prefeito João Cleber de Sousa Torres (MDB), que tenta voltar ao Executivo com um histórico de acusações digno de um roteiro de faroeste. Em 2003, João Cleber e o irmão, Francisco Torres de Paula Filho, foram apontados pelo Ministério Público Federal (MPF) como líderes de uma quadrilha de grileiros da região, apontados como mandantes do assassinato de sete trabalhadores rurais e de um comerciante no distrito de Vila Taboca, na zona rural de São Félix. Segundo a denúncia, o grupo agia em áreas públicas pertencentes à União, invadia e derrubava a floresta, para venda da madeira e ocupação das terras com gado. Os dois são recordistas em multas ambientais no município. Em 2014, mesmo ano em que entrou para a lista suja do trabalho escravo por expor os trabalhadores da Fazenda Bom Jardim a condições degradantes, João Cleber foi autuado pelo Ibama, por desmatamento, em 6,6 milhões de reais. A empresa Agropecuária Barra do Baú, do irmão Francisco Torres, acumula multas de 18 milhões de reais por crimes contra a flora. Tudo isso sem correção monetária. E sem que as multas tenham sido pagas.

Em Tapurah (MT), município que já administrou nos anos 2000, o paraense Carlos Alberto Capeletti (PSD) acumula um patrimônio de 109,6 milhões de reais, pela declaração de bens entregue à Justiça Eleitoral. O valor o coloca como o segundo mais rico do Estado. Ele possui um latifúndio de 23.000 e outro de 9.000 hectares. Mesmo assim, informou ao TSE possuir uma propriedade rural de 558,8 hectares por usucapião — um instrumento utilizado para garantir a permanência de pequenos posseiros que vivem e produzem para seu sustento. Capeletti foi multado em 2009, por órgãos ambientais estaduais, por desmatamento em uma de suas propriedades em Comodoro (MT). Em 2015, no mesmo município, pelo Ibama. Seu filho e sócio Thomas Augusto Capeletti levou em 2015 uma autuação milionária do Ibama, em Tapurah, de 1,57 milhão de reais. Todas essas autuações estão em grau de recurso no processo administrativo. Carlos Alberto foi absolvido em março deste ano pela Justiça, em primeira instância, da acusação de explorar trabalho escravo. Em 2008, o grupo de fiscalização do Ministério do Trabalho encontrou nove trabalhadores, um deles com menos de 18 anos, em situação degradante. Eles faziam obras em uma de suas propriedades em Tapurah. O juiz decidiu pela absolvição porque as provas apresentadas durante a investigação não foram confirmadas em juízo. Somente uma testemunha compareceu, para falar bem das condições de trabalho.

Tanto Tapurah como São Félix do Xingu ficam no Arco do Desmatamento, uma faixa de 267 municípios que concentram os maiores índices de desmatamento da Amazônia e que foi objeto de outra reportagem desta série. Assim como Tucumã, no Pará, onde o candidato e ex-prefeito Celso Lopes Cardoso declara a posse de mil hectares “em processo de regularização”. Ou seja, não escriturada em cartório. Preço: 50.000 reais. Goiano de São Miguel do Araguaia, ele chegou a declarar 12,53 milhões de reais em bens, em 2012. Hoje o médico possui 1,46 milhão de reais. Motivo principal: ele não tem mais uma fazenda de 4.000 hectares em São Félix do Xingu, que valia 8 milhões de reais. Em 2010, ele tinha sido multado em 2,54 milhões de reais pelo Ibama por desmatamento no município. Pecuarista, ele também já teve 1.090 cabeças de gado, mas diz não ter mais nenhuma. Conhecido como Doutor Celso, nome que aparecerá domingo na urna, o político é notório pela violência contra adversários. Em 2003, ele cumpriu pena sob acusação de ter mandado matar o vereador Adão Lote (PSB), assassinado por dois pistoleiros enquanto tomava banho em casa.

Doutor Celso não é o único médico goiano e prefeitável em Tapurah a declarar terras sem registro oficial: o atual vice-prefeito, Miguel Marques Machado (DEM), possui 5,51 milhões de reais em bens; e informa que 1,59 milhão de reais desse total se refere a fazendas em São Félix do Xingu e em Altamira, o maior município do Brasil, também no sul do Pará. A propriedade de 2.348 hectares em Altamira é mais uma declarada no TSE, no caso dele desde 2016, na categoria “direito de posse de terra”. Preço do latifúndio: 4.600 reais. Na casa dos mil, portanto, e não dos milhões de reais. Menos que uma moto nova. Machado foi procurado para explicar por que ele informou o Nirf, o Número do Imóvel na Receita Federal, em vez de, por exemplo, um cadastro no Incra. Mas também não atendeu a reportagem.

Todos os mencionados neste texto foram procurados pelo EL PAÍS, mas até o momento da publicação não deram retorno.

Grileiros e desmatadores estão virando “heróis”

Professor do Instituto de Agriculturas Amazônicas (Ineaf) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), Maurício Torres diz que a declaração de terras públicas por políticos não causa espanto. “O poder político está intimamente ligado ao econômico na apropriação de recursos naturais, fundamentada na grilagem, na extração ilegal de madeira e em garimpos clandestinos”, explica.

O município de Itaituba, no sudoeste do Pará, tem um candidato à reeleição que sintetiza todos esses itens: o madeireiro, pecuarista e ex-garimpeiro Valmir Climaco de Aguiar, acusado de grilagem e diversos outros crimes, costura amplo apoio político no Estado. Sua candidatura tem o aval do governador Helder Barbalho (MDB), de seu partido. Para se manter na prefeitura ele montou uma coligação com um leque amplo de siglas, do PP e DEM ao PT e PSL. Climaco chegou a atender a reportagem — mas para dizer que só falará após a eleição.

Em 12 agosto de 2019, enquanto o mundo se espantava com o Dia do Fogo, deflagrado dois dias antes, Climaco se reuniu com o governador e com representantes de empresas portuárias para discutir a construção de uma estrada em Santarenzinho, distrito de Rurópolis (PA). Motivo: facilitar a exportação de commodities. Até aí, nada que fugisse às suas atribuições. Entre os empresários na mesa, porém, estava Valmir Climaco de Aguiar Filho, seu filho — sócio da irmã Ana Clara Climaco de Aguiar na empresa Porto Tapajós, interessada direta no empreendimento.

Para Mauricio Torres, a ausência de fronteiras entre público e privado na Amazônia é ainda mais explícita por conta de sinais de apoio dados pelo Governo do presidente Jair Bolsonaro. “A figura do grileiro e do desmatador está sendo heroicizada, como um símbolo civilizatório”, afirma. O professor da UFPA enxerga uma contradição no comportamento de uma parte expressiva desses políticos: “Muitos deixaram seus Estados de nascimento como expropriados do direito à terra e se tornaram expropriadores na Amazônia”.

* Com equipe do De Olho nos Ruralistas.

Esta matéria faz parte de uma série de reportagens produzida pelo site De Olho nos Ruralistas, um observatório do agronegócio e das políticas ruralistas no Brasil. A série foi produzida com o apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF), em parceria com o Pulitzer Center.

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