Com uso de aplicativo e posto de saúde, aldeia indígena no Xingu registra zero mortes por covid-19
Estratégia tem sucesso no combate à pandemia, mas aldeia Ipatse teme que fumaça dos incêndios no Pantanal agrave o quadro respiratório dos infectados
Em meio aos incêndios que destroem o Pantanal e ameaçam expor as populações indígenas da região à covid-19, boas notícias são raras. Uma delas vem da aldeia Ipatse ―uma das 109 comunidades indígenas do Xingu―, que atingiu um objetivo abraçado coletivamente há seis meses: não perder nenhuma vida para o novo coronavírus. Historicamente submetido a um sistema de saúde mais frágil ―sem a presença diária da equipe médica ou hospitais próximos ao território―, o povo Kuikuro desta comunidade se mobiliza, desde março, para criar uma estratégia própria e frear a doença.
Um aplicativo de celular foi adaptado para rastrear casos suspeitos. Uma grande oca também foi levantada para isolar pacientes, enquanto a comunidade determinava sua quarentena. As ações até retardaram em alguns meses a disseminação da doença, mas em julho os casos começaram a crescer. Foi quando os Kuikuro inauguraram uma unidade própria de saúde, com cilindros de oxigênio para estabilizar pacientes, e contrataram uma médica e um enfermeiro para permanecerem no território. Tudo com o dinheiro de doações.
A aldeia ―na qual vivem cerca de 400 indígenas e que conta cerca de 77 infectados― até agora tem tido êxito no seu objetivo de mortalidade zero pelo coronavírus. O novo temor são os impactos do inferno que se alastra pelo Pantanal e pelo Parque do Xingu para a saúde dos indígenas, em plena pandemia. O fogo começa a se aproximar da Ipatse, e a fumaça é constante. Pelo menos, a situação na região ainda não é tão grave como a vivida em outras aldeias na área do Pantanal, que precisaram ser removidas por conta dos incêndios. “Nenhuma aldeia foi evacuada, por enquanto. Estamos trabalhando com o instituto IPAM Amazônia pra coordenar com os brigadistas do Ibama para tentar amenizar a situação”, conta o pesquisador Bruno Moraes, que trabalha com os Kuikuro. Mas a situação acende um alerta. Indígenas e indigenistas afirmam que a fumaça constante já tem piorado o quadro respiratório de pacientes infectados pelo novo coronavírus em alguns locais, como na aldeia Mayene, a 20 quilômetros dali. Na Ipatse, o temor é que essas complicações podem chegar em breve.
“Entrou o vírus aqui na aldeia, mas não teve ainda morte. Acho que o nosso plano deu resultado positivo, deu controle”, diz o líder indígena Yanama Kuikuro, presidente da Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu. Ele conta que a preocupação de como a aldeia enfrentaria a pandemia começou quando os jornais ―transmitidos para a comunidade nas TVs alimentadas por um gerador― noticiaram que o vírus estava se espalhando pelo território brasileiro, em março. Naquele momento, o cacique Afukaka já acendeu um alerta sobre a necessidade de se cuidar e começou a conversar com a comunidade para implementar uma quarentena voluntária.
É que as tarefas mais usuais da comunidade ―que vive basicamente de roça e pesca― poderiam trazer grandes riscos. Os indígenas que vivem na Ipatse costumam viajar cerca de 160 quilômetros até as cidades mais próximas (como Gaúcha do Norte e Canarana) para comprar alimentos que não produzem na aldeia, combustível para seus barcos e equipamentos usados na pesca. Esses deslocamentos constantes foram mapeados por meio do aplicativo desenvolvido por um coletivo transnacional de pesquisadores e cientistas sociais.
Os Kuikuro já utilizavam a ferramenta para mapear sítios arqueológicos e áreas cultivadas, além de monitorar regiões com risco de desmatamento e incêndios florestais. E decidiram, com seus parceiros, adaptá-la para mitigar a crise de saúde. O aplicativo acabou servindo para fazer um grande censo na comunidade. Agentes comunitários indígenas foram registrando o número de casas e os homens, mulheres e crianças que viviam nelas. Também colocavam no sistema informações que iam dos perfis com comorbidades até os motivos que estimulavam a saída dos “viajantes indígenas”. E organizaram ações para levar alimentos e equipamentos na aldeia, evitando esses deslocamentos e aumentando os índices de isolamento. Os próprios indígenas também produziram vídeos em Karib, o idioma local, para estimular que as pessoas permanecessem em casa.
“Queríamos entender o porquê da saída da aldeia para conseguir diminuir a circulação. 70% dos indígenas iam na cidade pra comprar alimento e combustível. Começamos a distribuir isso e de fato a gente viu uma redução drástica, de 20 pessoas viajando por semana para três. As viagens que continuaram foram de tratamento de Saúde, de gestantes que tinham que fazer o pré-natal”, explica o pesquisador Bruno Moraes, que tem trabalhado remotamente no monitoramento, de sua casa em Belém. Os técnicos geoespaciais também alimentam o sistema com informações sobre os viajantes de cada família e se apresentaram sintomas nos últimos 14 dias ― dados cruciais para isolar os contactantes de casos suspeitos e quebrar a cadeia de contágio.
Mesmo quando o coronavírus já avançava pela região do Xingu, a aldeia Ipatse viveu os primeiros meses de crise com relativa tranquilidade. E essa primeira fase foi de vigilância e preparação de uma resposta para quando os casos chegassem. Enquanto três indígenas alimentavam diariamente o aplicativo com informações dos pacientes, uma grande oca foi construída caso precisasse de um lugar para isolar os infectados. Mas quando um Kuikuro adoece, ele observa também se há enfermidade espiritual. E tente a recolher-se em casa e proteger o espírito. Por isso a casa de isolamento acabou sendo mais utilizada para a quarentena dos que precisaram ir até a cidade. Os viajantes ficavam ali antes de retornar ao convívio da comunidade como mais uma medida de proteção.
Uma estrutura de alvenaria também foi adaptada para virar uma unidade de atendimento aos doentes. O dinheiro das doações ―cerca de 200.000 reais― foi usado para comprar medicamentos, camas e cilindros de oxigênio. Um pequeno ambulatório foi organizado para atender e isolar os infectados, com autorização do Governo Federal. A unidade hoje está a cargo de uma médica e um enfermeiro que foram contratados por seis meses para o enfrentamento da pandemia na aldeia. “Ter médico aqui todo dia deixou a gente mais seguro na pandemia. A Sesai [Secretaria de Saúde Indígena, do Governo Federal] manda médico também, que vem por uma semana e depois vai pra outra comunidade”, conta Yanama. O novo equipamento de Saúde oferece oxigenoterapia a pacientes com desconforto respiratório. Nesta semana, recebeu dois indígenas que foram estabilizados e não precisaram de remoção.
A estrutura da Ipatse acabou virando referência para cerca de seis aldeias do entorno. Todos os dias, por meio do rádio, a médica Giulia Parise Balbão se comunica com outras comunidades para dar orientações de saúde e fazer consultas de telemedicina. “Quando cheguei, já estava muito definido que o objetivo era não perder nenhuma vida na aldeia. As pessoas já estavam trabalhando incansavelmente. Eu vim apenas me somar a essa equipe”, conta Balbão. A estratégia aplicada ali também está sendo expandida para outras localidades, com dados sendo colhidos para o mesmo aplicativo que os Kuikuro utilizam. “Já começamos a fazer o monitoramento destas aldeias vizinhas também. Estamos exportando a ideia como um todo. O tratamento mesmo deve ficar concentrado na Ipatse, mas esperamos conseguir contratar mais médicos para dar essa assistência a 12 aldeias, que compõem o total 13% da população do Parque do Xingu”, afirma Moraes.
Até o início desta semana, a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) contabiliza 806 mortes devido à covid-19 entre a população indígena no Brasil todo. O Governo registra 419 óbitos, porque não considera indígenas em áreas urbanas.
No último mês, os casos de coronavírus entre indígenas têm crescido. No início de julho, a aldeia Ipatse confirmou seus primeiros casos, de dois indígenas que provavelmente foram infectados na unidade de saúde da cidade e tiveram alta antes de serem testados. Semanas depois, outros moradores da aldeia apresentaram sintomas após participarem de um enterro. Os técnicos geoespaciais ―que diariamente monitoram a situação das famílias― rapidamente identificaram essas pessoas, que foram monitoradas pela equipe médica. Testes realizados na aldeia dão conta que ao menos 77 pessoas já contraíram o vírus. O cacique e uma idosa de 90 anos adoeceram e se recuperaram. A morte dos mais velhos é uma grande preocupação da comunidade, cuja história é guardada e repassada especialmente pelos anciãos. A vigilância segue firme com o mesmo objetivo assumido seis meses atrás: a mortalidade zero pelo coronavírus.
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