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Leilão do 5G no Brasil é novo capítulo da guerra fria do século XXI entre China e Estados Unidos

Participação da chinesa Huawei se torna o pomo da discórdia na disputa pela frequência que promete dar um salto tecnológico no país. Trump faz campanha mundial contra o grupo

Um homem de máscara caminha com um telefone celular na mão no centro de São Paulo, no último 16 de julho.
Um homem de máscara caminha com um telefone celular na mão no centro de São Paulo, no último 16 de julho.Fernando Bizerra (EFE)

O Brasil está no centro da guerra fria do século XXI com o cobiçado leilão para ocupar a nova frequência celular a ser aberta no país, o 5G. A disputa por uma nova banda de comunicação no mercado tecnológico tem as duas nações mais ricas do mundo em posições de confronto: os Estados Unidos e a China. Em jogo, um mercado que pode atrair até 180 bilhões de reais em investimentos para o Brasil, país que tem mais celulares que habitantes —são 225,3 milhões de aparelhos para 209,5 milhões de pessoas.

No coração dessa concorrência estão a chinesa Huawei e companhias que não são americanas, mas que contam com a simpatia e, em alguns casos, com a promessa de financiamento do Governo Donald Trump. É o caso da sueca Ericsson, a finlandesa Nokia e a sul coreana Samsung. Elas, assim como a Huawei, são fornecedoras de equipamentos e serviços para companhias como Vivo, Claro, Tim, Oi e Algar. Esse quinteto, conforme informações do mercado e de técnicos do Governo Jair Bolsonaro, demonstrou interesse em estar no leilão. Atualmente, elas atuam nas redes 3G e 4G.

A terceira geração das redes móveis, o 3G, começou a se expandir no Brasil em 2007, possibilitou a “transformação” do celular em um minicomputador portátil com internet comparável com as banda largas que haviam nas casas e escritórios. Foi a responsável por popularizar o acesso à internet móvel e chega a 95% dos 5.570 municípios brasileiros. O 4G, que veio de 2012 para cá e aperfeiçoou o tráfego de dados e acelerou a velocidade em até 100 vezes, chega a 75% das cidades. O 5G surge como um aperfeiçoamento da geração anterior e promete manter tudo conectado ao mesmo tempo, não apenas os computadores e celulares, mas também TVs, geladeiras, carros, máquinas de lavar, câmeras de segurança. É o que foi batizado de internet das coisas, com uma velocidade de até 20 vezes.

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Entre especialistas, é quase um consenso de que a concessão de uma nova frequência para as operadoras é um assunto de segurança nacional e, portanto, deveria ter um cuidado redobrado por parte dos Governos. “É a guerra fria do século XXI porque se trata da escolha o padrão tecnológico de dados. É tão importante que vemos presidentes de vários países debatendo essas questões”, diz o ex-secretário do Ministério da Defesa, o economista Flávio Basílio.

O que será leiloado no Brasil são cinco blocos de frequências para que as companhias de telecomunicações operem o 5G. As frequências a serem leiloadas são como estradas que hoje estão bloqueadas, mas que, a partir da autorização do Governo, os “carros” —ou dados— poderão circular por elas.

Ao redor do planeta tem sido comum se deparar com restrições à Huawei, depois que o Governo dos Estados Unidos vetou a participação dela em seu mercado. O argumento é de que a companhia chinesa não consegue garantir a segurança aos seus equipamentos, o que colocaria em risco a comunicação de temas sensíveis, passando pela área governamental, de defesa, de segurança pública e de relações exteriores. Assim como a comunicação feita entre os cidadãos comuns, como mensagens trocadas por aplicativos de mensagens ou e-mails.

A suspeita é refutada por porta-vozes da empresa em diversos países. “As acusações são infundadas. Todo o crescimento que tivemos ao longo dos últimos dez anos mostram que governos, operadoras e parceiros tiveram todo interesse em avaliar a Huawei de uma forma bastante intensiva”, diz o diretor global de cibersegurança e soluções da companhia, Marcelo Ikegami Motta. Com exceção dos Estados Unidos, nos demais países onde há 5G a Huawei está presente. A companhia é a maior do setor e tem negócios com 170 países no fornecimento de equipamentos e tecnologia para celulares e redes de internet.

Na semana passada, o Reino Unido decidiu impedir que as companhias de telecomunicações contratassem os serviços e equipamentos da Huawei. Além disso, determinou que os aparelhos que já estivessem em funcionamento deveriam ser retirados de operação até 2027. Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Grécia, tendem a seguir o mesmo caminho ou ao menos apresentar limitações à companhia chinesa.

O presidente Donald Trump intensificou seus ataques à Huawei em 2018, quando a executiva da companhia, Meng Wanzhou, filha do fundador Ren Zhengfei, foi presa no Canadá sob a acusação de supostas violações da lei de sanções dos Estados Unidos. A partir de então, a empresa passou a ser acusada de espionar para o Governo chinês e de roubar segredos de concorrentes. Por isso, os americanos ameaçam bloquear parcerias no setor de inteligência com os governos que não limitarem a participação da Huawei em seus leilões.

Como o Brasil de Bolsonaro tem um alinhamento quase automático com os Estados Unidos, é forte a tese entre técnicos e políticos de Brasília de que o Palácio do Planalto está avaliando essa possibilidade de restringir a atuação em seu mercado, algo que seria inédito. “O Governo americano está dando exemplo de nacionalismo econômico. Aqui pode ser a mesma coisa”, diz o economista Arthur Barrionuevo Filho, professor da Fundação Getúlio Vargas.

Antes de Bolsonaro, o Brasil estava alheio a esse debate geopolítico. O Governo nunca criou diretrizes e deixou as operadoras se regularem —na cartilha liberal da economia— desde que adquirissem equipamentos legalizados. “Em telecomunicações, o Brasil sempre deixou o mercado escolher”, explicou o ex-secretário Flávio Basílio. Ele foi um dos que participaram do processo inicial do leilão da tecnologia ainda na gestão do presidente Michel Temer, entre 2016 e 2018. Foi o contrário do que ocorreu, por exemplo, na área de defesa, quando o país optou pelo caça sueco Gripen, da empresa SAAB, ou pelo submarino nuclear francês, da DCNS. Naqueles casos, era explícita a preocupação com segurança.

Em resposta ao EL PAÍS, o Ministério das Comunicações e a Agência Nacional de Telecomunicações demonstram que não há consenso interno sobre uma eventual limitação à Huawei. A pasta não descartou um possível veto e afirmou que não há uma decisão sobre a questão porque ela depende da análise de diversos outros órgãos estatais, como o Gabinete de Segurança Institucional e os ministérios da Economia e de Relações Exteriores. Enquanto que a agência afirma que “inexiste ingerência do poder público sobre a escolha, por se tratar de questão afeita à esfera das relações privadas entre as empresas”.

Por se parecer mais com um software do que com um hardware, a rede 5G é mais vulnerável a ataques porque a evolução se baseia em programas de computadores, não necessariamente nos equipamentos. Por exemplo, para se “grampear” a comunicação da rede 4G um fraudador teria de instalar um aparelho de interceptação em uma antena de celular. No caso da 5G, seria preciso apenas entrar na rede onde ele está instalado e ter acesso a informações sigilosas de milhares de equipamentos que a estejam usando. A grosso modo, seria como instalar vírus em computadores para copiar os arquivos salvos na máquina. À distância, um hacker poderia ter acesso a esses dados, caso a rede não fosse segura.

Segundo especialistas, apesar de toda a pressão norte-americana, não há garantia de que as empresas preferidas dos Estados Unidos sejam 100% seguras. “Há um receio dos EUA de perderem hegemonia, por isso agem dessa maneira”, diz o engenheiro Fábio de Miranda, coordenador do curso de Engenharia da Computação do Insper. Na visão dele, o Brasil não deveria excluir a Huawei do processo. “Enquanto país periférico e não tão próximo de tensões políticas tão exacerbadas, o ideal seria focar no custo e na performance de tecnologia e assegurar uma auditoria sobre os equipamentos”, afirmou.

Segundo os dados internos da companhia, a Huawei hoje fornece produtos para quase a metade do mercado brasileiro. Ao defender que não sofra restrições, a empresa chinesa diz que sua tecnologia hoje é 1,5 vez mais rápida que a de seus concorrentes e que seus equipamentos consomem 30% a menos de energia, diz o diretor Motta.

Cifras bilionárias

A previsão do Ministério das Comunicações do Brasil e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) é que o leilão ocorra até junho de 2021. Inicialmente deveria ter acontecido ainda no primeiro semestre de 2019, foi postergado para março de 2020, mas pressões políticas de empresários da radiodifusão sobre a Anatel adiaram o prazo. No meio da briga estava o uso de uma frequência que poderia interferir na transmissão para cerca de 12 milhões de antenas parabólicas. Por essa razão, o Governo decidiu dar alguns passos para trás. Postergou a análise do processo na agência reguladora e lançou uma consulta pública para a elaboração de um novo edital que não interferisse na frequência desses usuários das parabólicas, em detrimento de outros possíveis 190 milhões de clientes. Além disso, veio a pandemia de coronavírus, que paralisou o mundo.

Ex-secretário nacional de telecomunicações, o advogado e consultor André Muller Borges, diz acreditar que o momento não era o adequado para a realização de um leilão, mesmo antes da pandemia, porque as empresas não tinham recursos para entrar na disputa. “As operadoras estão ainda completando e exaurindo o investimento em 4G que começou a ser feito em 2014. O 5G está sendo jogado para mais adiante porque elas não precisam e não têm condições de fazer esse investimento agora”.

De fato, a questão financeira é uma das que mais pesa na atual conjuntura. Quando começou a ser pensado, em 2017, o Governo calculou que poderia arrecadar de 20 bilhões a 30 bilhões de reais com o leilão. Atualmente, o valor tem sido revisto porque ainda não foi definida a modelagem do certame. “O poder público tem de decidir se vai valorizar a maximização da receita auferida com o leilão, o valor da tarifa para o usuário ou a capacidade de expansão desse serviço no território nacional. Só depois, saberemos o preço”, diz Sergio Paulo Galindo, presidente executivo da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom).

Questionada sobre o tema, a Anatel informou que os estudos de precificação ainda se encontram em curso. “A presente licitação tem como prioridade estabelecer compromissos de investimentos para ampliação do acesso a serviços de telecomunicações pela população em detrimento de aspectos de arrecadação”.

E se as operadoras e os Governo ainda não se entenderam sobre os valores a serem postos à mesa, uma outra fornecedora de equipamentos pressiona pela realização do leilão. No fim do ano passado, a Ericsson apresentou um estudo segundo o qual o atraso na disputa iria retardar uma série de investimentos no país. O cálculo era o de que que a implementação do 5G em 2020 atrairia 180 bilhões de reais pelos próximos cinco anos. Assim, a cada ano de atraso, o país perderia 25 bilhões de reais entre arrecadação de impostos e vendas de equipamentos.

Barreiras pelo mundo

Fontes do Governo americano citaram que além do Reino Unido que seguiu Washington, há diálogos para que Polônia, Dinamarca, República Tcheca, Estônia, Letônia e Romênia também criem barreiras mercadológicas. Atualmente, o serviço de 5G está disponível na Coreia do Sul, a pioneira, e em diversas regiões dos Estados Unidos, China, Cingapura Espanha, Suíça, Alemanha, França e Holanda.

Na América Latina e no Caribe, o 5G ainda engatinha. A tecnologia funciona apenas no Uruguai, por meio de uma empresa estatal. Há registros de que operadoras menores atuam também em regiões de Porto Rico, Suriname, Trinidad e Tobago e nas Ilhas Virgens Americanas. No início deste ano, o Chile anunciou que estava preparando o seu leilão, enquanto que a Argentina decidiu iniciar testes exatamente com a Huawei.

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