Bolsonaro comemora a “volta” da cloroquina enquanto até assintomáticos recebem a droga no SUS
Sem protocolo baseado em evidências científicas, e com pesquisas mundiais em xeque, tratamento da covid-19 com base no medicamento cresce no Brasil
“A cloroquina voltou!”, comemorou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na noite desta sexta-feira. Ele se referia a mais um capítulo da novela envolvendo idas e vindas de pesquisas sobre a eficácia ou não do uso da substância no tratamento de pacientes com o novo coronavírus. Nesta semana, a The Lancet retirou de sua plataforma, a pedido dos autores, o estudo global que concluía que a cloroquina e seu derivado, a hidroxicloroquina, não ofereciam nenhum benefício para os pacientes, inclusive podendo aumentar o risco de morte em 30% dos casos. Dúvidas em relação à pesquisa fizeram a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciar que retomará os testes com os medicamentos, interrompidos após a publicação do estudo. Enquanto pesquisadores do mundo todo se debatem sobre a eficácia ou não da substância e, principalmente, sobre seus efeitos colaterais, no Brasil não somente sua produção segue a todo o vapor, como os comprimidos têm sido distribuídos pela rede pública até para pacientes assintomáticos, contrariando o protocolo do Ministério da Saúde.
Foi o que aconteceu com o cozinheiro Lucas Bittencourt, 23 anos, da cidade de Porto Feliz, a 118 quilômetros de São Paulo. Ele trabalha em uma residência e fez o teste PCR, que atesta a presença do coronavírus, a pedido da chefe, que faz parte do grupo de risco. Para sua surpresa, já que não tinha sintoma algum, o resultado foi positivo. “Assim que soube fui ao posto de saúde. Só pediram para eu ficar isolado e me deram os remédios”, afirma ele. Os remédios mencionados por ele formam parte de um kit com sete medicamentos que obedecem ao protocolo de tratamento precoce adotado pela cidade para suspeitas de covid-19.
No kit estão incluídos hidroxicloroquina (para tratar malária e doenças autoimunes), azitromicina (antibiótico), ivermectina (vermífugo), celocoxibe (doenças autoimunes), paracetamol (febre e dores no corpo), metoclopramida (náusea e vômitos), enoxaparina (anticoagulante). Ao tomar o coquetel, o cozinheiro afirma ter sentido ânsia, dor de barriga e diarreia, mas elogiou a orientação recebida no posto de saúde. “Não tive medo de tomar a cloroquina”, diz. “Se eles me recomendaram é porque sabem o que estão fazendo”.
A Prefeitura de Porto Feliz afirmou em nota que “não há distribuição de kits no município”. E que o protocolo de prescrição da cloroquina só é realizado para pacientes sintomáticos após exames como função renal e hepática, tomografia computadorizada de tórax e eletrocardiograma laudado por cardiologista, bem como a “autorização formal de cada paciente”. E que só então é decidido pelo médico “se há ou não indicação com segurança do uso da hidroxicloroquina e das demais medicações que compõe o protocolo”.
No final do mês passado, o Ministério da Saúde emitiu novas diretrizes para a aplicação da cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes não só graves - como já era admitido - mas também com sintomas leves da doença, contanto que houvesse consentimento do médico e do paciente. A utilização desses medicamentos, fortemente defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, despreza o fato de que os estudos sobre seu uso ainda são inconclusivos. O protocolo também vai contra o que aponta a única pesquisa brasileira sobre a droga. Em 18 de abril, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) publicou uma nota afirmando que doses altas da cloroquina não eram indicadas para o tratamento de pacientes graves com a covid-19 e que ainda não era possível atestar a eficácia de seu tratamento sobre a doença. Os resultados, ainda iniciais, até hoje não avançaram e não há conclusão sobre o estudo.
Por isso, o Tribunal de Contas da União (TCU) deu dez dias, a contar do último dia 3, para que o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) expliquem a fundamentação técnica e jurídica que levou ao novo protocolo. O ministro Benjamin Zymler, do TCU, destacou que essa nova orientação pode elevar os gastos públicos em saúde, tanto com a compra do medicamento, quanto com a realização de exames.
De fato, até o final de maio, o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx) já havia produzido 1,25 milhão de comprimidos de cloroquina para atender à demanda do Ministério da Saúde. Antes do início da crise da covid-19 o LQFEx produzia um lote de 250.000 comprimidos a cada dois anos, sendo esta demanda exclusiva do Exército Brasileiro, para o combate à malária. Os números da produção da droga são altos, em comparação aos anos anteriores, mas o Ministério da Saúde já distribuiu aos Estados quatro vezes mais que essa produção. Até o momento, 4,3 milhões de comprimidos da cloroquina foram enviados para as secretarias estaduais da Saúde em todo o país. Segundo a pasta, quatro empresas têm registros válidos junto à Anvisa para fornecer o medicamento: Apsen Farmacêutica, Sanofi Aventis, Medley Sanofi no Brasil, e EMS Indústria Farmacêutica. Elas são responsáveis por abastecer o mercado público e privado no país.
Do número total de comprimidos distribuídos, quase 1 milhão foram enviados para São Paulo, o epicentro desta pandemia e Estado com o maior número de casos e óbitos até este sábado, 6 de junho. Apesar da grande remessa recebida, o governador João Doria (PSDB) lembrou, em entrevista ao EL PAÍS, que “a ciência não recomenda [o uso da droga], exceto em casos muito especiais, com prescrição médica e a aceitação do paciente, porque os efeitos colaterais são muito graves, principalmente para cardíacos”. Ele classificou a orientação do Governo Federal como uma “vontade deliberada de recomendar o uso indiscriminado” da substância.
Mas os municípios paulistas não necessariamente seguem o governador. Em entrevista para o Jornal da Cultura, o prefeito de Porto Feliz, o médico Antonio Cássio Prado (PTB), afirmou que o kit distribuído pela rede a pessoas como o cozinheiro Lucas Bittencourt, mencionado no início desta reportagem, custa menos de 40 reais e “tem eficiência na fase inicial da doença, nos primeiros cinco ou seis dias”.
O caso da bancária Bruna Torres de Lara, 27 anos, foi diferente. Ela procurou o posto de saúde de Porto Feliz com dores no corpo, falta de ar e tosse excessiva. Fez eletrocardiograma, exames de sangue e tomografia, que detectou uma mancha no pulmão. Saiu do atendimento com uma receita médica e um kit com os sete medicamentos. Não fez exame para detectar o novo coronavírus na rede pública, mas optou por seguir o protocolo de cinco dias e o isolamento de duas semanas. Assinou o termo de consentimento, que deixa claro os riscos dos medicamentos. “Não sei se foi por excesso de medicação, ou se foi a hidroxocloroquina, mas em um dos dias me deu um mal estar forte, dor de cabeça, ânsia, diarreia”, conta. Os sintomas duraram pouco, mas ela decidiu fazer o exame de PCR na rede privada para ter certeza. O resultado saiu uma semana depois, após ela terminar os medicamentos, e foi negativo para o coronavírus.
A prefeitura de Porto Feliz não quis compartilhar o protocolo técnico com a reportagem, nem responder em qual pesquisa se baseia. A assessoria de comunicação informou por telefone apenas que é o mesmo utilizado na cidade de Floriano, no Piauí, que chamou a atenção da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. A ministra se disse “impactada” com o “milagre do uso da cloroquina associada a medicamentos”, após uma visita à cidade de cerca de 60.000 habitantes, que teria obtido bons resultados com os fármacos. O protocolo foi recomendado pela médica piauiense Marina Bucar Barjud, que trabalha no Hospital HM Puerta del Sur em Madri, com base em sua na experiência na Espanha.
“O que mais querem, que desça um anjo do céu para dizer que o remédio dá certo? São milhares de cientistas no mundo atestando, médicos do mundo inteiro atestando, que mais vocês querem?”, afirmou Damares, em entrevista coletiva durante a visita ao Hospital Regional Tibério Nunes na segunda semana de maio, que utiliza o protocolo. A cidade piauiense registrou 18 mortes e 82 casos confirmados; 39 pessoas se recuperaram da doença.
A reportagem tentou falar com Marina Bucar, que tem dado consultorias sobre o protocolo para municípios brasileiros, mas segundo seu irmão, o também médico Walter Bucar Barjud, a médica está com “muito trabalho, assessorias importantes, treinamento e orientações para médicos que estão salvando vidas com sua ajuda” e não poderá dar entrevista.
Embates teóricos
Não é a primeira vez que uma pesquisa sobre os medicamentos é derrubada de uma publicação científica. No dia 20 de maio, a revista medRxiv retirou do ar o primeiro estudo que recomendou a utilização de cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com a covid-19. O trabalho dos pesquisadores franceses ganhou repercussão mundial, levando líderes como o presidente dos EUA Donald Trump a defender as drogas. O uso indiscriminado das drogas pós-publicação, especialmente fora do ambiente hospitalar, causou preocupação no próprio órgão regulador de alimentos e medicamentos do EUA (FDA). “Autorizamos seu uso temporário apenas em pacientes hospitalizados com covid-10 quando os ensaios clínicos não estão disponíveis ou a participação não é viável”, afirmou o FDA. Segundo o órgão, “estes medicamentos têm vários efeitos colaterais, incluindo problemas sérios de ritmo cardíaco que podem ser fatais”.
O trabalho dos pesquisadores franceses recebeu uma enxurrada de críticas pela metodologia e amostra reduzida - apenas 30 pacientes -, o que fez com que os autores pedissem a retirada da pesquisa do ar e também que ela não fosse citada em outros trabalhos científicos. “Por conta da controvérsia sobre a hidroxicloroquina e da natureza de seu estudo, eles [autores] gostariam de avaliar o manuscrito após revisão metodológica”, afirmou em nota a revista científica.
O estudo em defesa da cloroquina e da hidroxocloroquina caiu justamente quando aconteceu a divulgação de uma pesquisa considerada mais robusta, na The Lancet. O estudo teria sido realizado com 96.000 pacientes em 600 hospitais de todo o mundo, inclusive Brasil. A pesquisa parecia ter concluído a questão, ao afirmar categoricamente que os medicamentos aumentavam o risco de morte e piora cardíaca. França e Itália proibiram seu uso, enquanto a Bélgica alertou sobre sua utilização fora dos ensaios clínicos. Mas também não passou pela revisão da comunidade científica. Uma carta aberta assinada por mais de 120 pesquisadores criticaram inconsistências no estudo. A agência de medicamentos espanhola concluiu que o estudo não fornecia provas sólidas e recomendou que se continuem os ensaios clínicos com esses fármacos no país.
Paralelamente, uma investigação do jornal britânico The Guardian revelou problemas com as informações passadas pela empresa norte-americana Surgisphere, cujo banco de dados de pacientes e pesquisas médicas foi utilizado na pesquisa. Dados da Austrália, por exemplo, mostravam um número de mortos maiores do que o registrado do país. A companhia - que tem poucos profissionais da área média entre seus colaboradores, mas, curiosamente, tem um escritor de ficção científica e um ator pornô na equipe -, se recusou a liberar o acesso ao banco de dados alegando confidencialidade.
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