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Supremo pressiona bolsonaristas com investigação sobre ‘fake news’ que abarca até eleições de 2018

Ação tem como base inquérito controverso. Bolsonaro critica Corte no Twitter e cogita descumprir ordens judiciais. Eduardo fala em “medida enérgica” do pai e em “ruptura”

O blogueiro bolsonarista Allan dos Santos após policiais federais deixarem sua casa, em Brasília.
O blogueiro bolsonarista Allan dos Santos após policiais federais deixarem sua casa, em Brasília.ADRIANO MACHADO (Reuters)

Na terça-feira, os bolsonaristas estavam em júbilo. Comemoravam a ação da Polícia Federal, desenhada pela Procuradoria-Geral da República e com aval do Supremo Tribunal de Justiça, contra um ex-aliado, o governador fluminense Wilson Witzel (PSC). O movimento aumentou a água da fervura do debate sobre o suposto uso político da PF pelo bolsonarismo e o mergulho do Brasil num “estado policial”. Menos de 24 horas depois, foi a vez de a PF bater à porta de parte dos que comemoravam no dia anterior. Com base no controverso inquérito das fake news, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, ordenou buscas e apreensões contra 29 apoiadores do presidente.

Contra quatro pessoas, o magistrado, que já havia blindado os delegados da PF que trabalham no caso assim que Bolsonaro começou a trocar peças na corporação, determinou ainda a quebra de sigilo bancário e fiscal desde julho de 2018 até abril de 2020, período que abarca a campanha presidencial. No procedimento aberto pela própria Corte, que apura boatos contra os magistrados, Moraes quer também saber se o grupo financiou o envio de fake news durante a campanha vencida por Bolsonaro e se continuou após a posse dele —trata-se de um desdobramento que pode se mostrar explosivo, já que há ações no TSE (Tribunal Supremo Eleitoral) que investigam o tema. Os que tiveram o sigilo quebrados foram os empresários Luciano Hang, dono da Havan e Edgard Corona, da rede de academias Smart Fit, o ex-militar da Marinha Winston Rodrigues Lima, e o humorista Reynaldo Bianchi.

A reação de Augusto Aras, o chefe da PGR, não demorou e ele passou a pedir a suspensão da investigação do Supremo —algo que nem a Advocacia Geral da União, responsável por defender a presidência da República, havia solicitado até o momento. Quando questionado pelo STF sobre o tema no ano passado, o procurador Aras disse que o inquérito era uma “atuação legítima do Supremo para apuração de fatos supostamente criminosos aptos a lesionar o funcionamento da Corte”. Agora, ele pede o fim do procedimento e diz que a PGR viu-se “surpreendida com notícias na grande mídia de terem sido determinadas dezenas de buscas e apreensões e outras diligências, contra ao menos 29 pessoas”. Aras não está só. Ele se alinha aos que no mundo jurídico veem no inquérito uma extrapolação do STF, especialmente pela falta de definição clara do que é investigado. O PGR, questionado pelo excessivo alinhamento com Bolsonaro, reclamou da falta de participação, supervisão ou anuência prévia da Procuradoria-geral.

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Com mais esse choque institucional exposto, o presidente Bolsonaro convocou uma reunião de emergência para analisar as operações contra seus aliados, muitos deles centrais em sua engrenagem de apoio nas redes sociais. No encontro, cogitou a possibilidade de que ele e seus ministros passem a descumprir ordens judiciais que venham do Supremo, conforme relataram interlocutores do Palácio do Planalto. Uma das estratégias discutidas foi insistir na nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal. Ramagem é amigo dos filhos do presidente e diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e foi proibido de assumir por Moraes, num round anterior da disputa entre Planalto e Supremo. A outra medida estudada seria a de que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, se negue a prestar depoimento no inquérito em que ele é investigado pelo crime de racismo também no âmbito da Corte.

O cenário inteiro é um problema maiúsculo porque próprio Bolsonaro é alvo de uma investigação no STF, no qual é suspeito de cometer cinco crimes, entre eles o de interferir politicamente na PF. Há dias o presidente direcionou sua metralhadora digital contra o decano Celso de Mello, responsável pelo inquérito e pela divulgação do vídeo de uma reunião ministerial, na semana passada. Na noite desta quarta-feira, ampliou o foco, para atacar o STF no Twitter também pelas ações de Moraes. “Ver cidadãos de bem terem seus lares invadidos, por exercerem seu direito à liberdade de expressão, é um sinal que algo de muito grave está acontecendo com nossa democracia”, escreveu. E completou: “Nenhuma violação desse princípio deve ser aceita passivamente.”

Pouco antes, liderados por seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, alguns dos alvos do inquérito das fake news se reuniram numa transmissão ao vivo para redobrar as apostas contra a Corte: “Quando chegar ao ponto que o presidente não tiver mais saída e for necessário uma medida enérgica ele é que será tachado como ditador”, disse Eduardo, numa transmissão com a participação do ideólogo do bolsonarismo Olavo de Carvalho e que chegou a ter mais de 100.000 pessoas como espectadores. “Eu até entendo quem tenha uma postura mais moderada, vamos dizer, para não tentar chegar em um momento de ruptura, um momento de cisão ainda maior, um conflito ainda maior. Eu entendo essas pessoas que querem evitar esse momento de caos, mas, falando bem abertamente, opinião do Eduardo Bolsonaro, não é mais uma opinião de se, mas de quando isso vai ocorrer”, disse o deputado, que previu o momento em que a investigação do STF baterá à sua porta.

Não foram os únicos a cerrar filas contra o Supremo. Mais cedo, o vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB), havia engrossado o coro contra o inquérito do STF. “Compete ao MP a ação penal pública, além de assegurar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial (acusar, investigar e denunciar). E aos demais Poderes zelar pela transparência e publicidade dos atos do Poder Público. É isso que está acontecendo no Brasil?”, perguntou Mourão, no Twitter.

O certo é que há mais perguntas que respostas sobre a crise, e sinais de que o Supremo não pretende dar passos atrás. No começo da tarde, Luiz Fux, que preside interinamente o tribunal pela ausência de Antonio Dias Toffoli, que se recupera de uma cirurgia, usou o início de uma sessão da Corte para enviar um recado: “O império da nossa Constituição, a sustentabilidade de nossa democracia e a garantia das nossas liberdades não haveria sem um Poder Judiciário que não hesitasse em contrariar maiorias para a promoção de valores republicanos e para o alcance do bem comum”, enunciou.

Repercussão no Congresso

O dia também foi de extrema agitação no Congresso porque entre os alvos da ação deflagrada por Moraes, com a ordem de apreender celulares e tablets, estão nada menos que oito deputados federais e estaduais bolsonaristas: Carla Zambelli, Bia Kicis, Luiz Philippe de Orleans Bragança, Junio Amaral, Filipe Barros e Daniel Silveira, além dos deputados estaduais por São Paulo Douglas Garcia, Gil Diniz. Todos são do PSL, antigo partido de Bolsonaro, e foram intimados a depor sobre a existência do chamado “gabinete do ódio”, um suposto grupo orquestrado por assessores de Bolsonaro que tem como objetivo disseminar notícias falsas e ataques a diversos adversários políticos e à Corte constitucional.

Outra caixa de ressonância óbvia foram as redes bolsonaristas, já que o STF também mirou os blogueiros e ativistas pró-Bolsonaro Allan dos Santos, Bernardo Kuster, Marcos Belizia e Sara Winter. O ex-deputado federal, condenado pelo mensalão e neo-bolsonarista Roberto Jefferson, presidente do PTB, também foi alvo da operação. A maioria se queixou de que não sabia oficialmente sobre o porque estavam sendo investigados. Todos diziam que estavam sendo censurados e que não iam se calar, manteriam as críticas contra o Supremo. “Se pensam que nós iremos amansar: ‘ai meu Deus que medinho!’. Nós não vamos parar de falar. Nós vamos encher o saco”, disse Kuster em seu canal no YouTube.

Sem maioria para impor revés a Bolsonaro, a oposição ao Governo no Parlamento tenta amplificar o episódio o quanto pode. A deputada e presidente do PT, Gleisi Hoffmann, cobrou a continuidade da CPMI das Fake News que está paralisada no Congresso, por conta da pandemia de coronavírus. “Logo chegarão ao covil dos criminosos. Questão de tempo. Por isso não tem justificativa a CPMI da fake news no Congresso estar parada”. Em nota, o PT informou que pretende anexar as informações do inquérito numa ação judicial que tramita no Tribunal Superior Eleitoral e pede a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.

A relatora dessa CPMI, Lídice da Matta, afirmou que as informações coincidem com o que tem sido apurado pelo grupo de parlamentares. “Teremos agora importantes novos elementos que nos ajudarão a desmontar essa rede de ódio, inverdades e impunidade que vem ameaçando a própria existência da democracia e dominando a política nacional desde as eleições presidenciais de 2018”.

No meio do fogo cruzado, o advogado constitucionalista e professor Erick Pereira teme pelo aprofundamento da desconfiança da sociedade nas instituições. “Se o cidadão não entender que ter instituições fortes e um Judiciário forte é fundamental para a democracia, vamos gerar uma sensação de anarquia profunda, em que ninguém respeita ninguém”, analisou Pereira. Já Edvandir Paiva, presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal, lamentava pela imagem da PF, matéria de disputa especialmente depois da Operação Lava Jato: “A nossa credibilidade foi conquistada com muito trabalho, não podemos deixar que pensem que servimos a governo ou ideologias. Muitos colegas têm me dito que não basta ser honesto, tem de parecer honesto. Essa é a nossa luta”.

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