“Fugi da Itália e estou bem, mas não quero colocar ninguém em risco”, diz brasileira em isolamento social
Pesquisadora brasileira morava na Bolonha quando os casos de coronavírus explodiram no país. De volta a São Paulo, ela aderiu à quarentena voluntária mesmo sem sintomas da doença
Ao se deparar com o cartaz alertando sobre o fechamento da maior biblioteca pública da Itália, no histórico palácio do Archiginnasio, seu refúgio entre os livros para a pesquisa de doutorado, a brasileira Isabella Callia, 45, percebeu a gravidade da situação. “Caiu a ficha de que eu precisava dar o fora dali o mais rápido possível”, afirma a pesquisadora em história e cultura da alimentação. Morando desde setembro em Bolonha, capital da Emília-Romanha, segunda região mais afetada pela pandemia de coronavírus no país, ela viveu a angústia de voltar ao Brasil às pressas em meio aos decretos de bloqueio à circulação de pessoas baixados pelo Governo italiano na tentativa de conter a propagação do Covid-19.
Na última quarta-feira, finalmente conseguiu retornar a sua casa em São Paulo depois de uma saga em busca de passagem aérea. “As empresas de fora fecharam suas rotas, enquanto as companhias locais pararam de oferecer voos para agências”, conta Isabella. A etapa de seu doutorado no exterior só terminaria em abril, mas ela não teve dúvidas em abrir mão da continuidade no país assim que recebeu um alerta no celular de que o Governo fecharia as universidades. Àquela altura, a Emília-Romanha estava prestes a ser classificada como zona vermelha e se tornar uma das primeiras regiões isoladas no país. “Eu entrei em parafuso”, lembra a pesquisadora, bolsista Capes pelo programa de Língua, Literatura e Cultura Italianas da FFLCH. “Já tinham vetado os deslocamentos de ônibus e trem. Só faltava fechar os aeroportos.”
Em menos de uma semana, ela correu pelas bibliotecas de Bolonha para tirar cópias dos livros de sua pesquisa, fez uma varredura em agências de viagem, teve uma passagem cancelada em cima da hora e, quando já se desesperava diante da possibilidade de não conseguir sair da Itália, encontrou um voo de Roma para o Brasil previsto para o dia seguinte. Passou a madrugada arrumando malas e limpando cômodos até entregar as chaves do apartamento alugado. Ao chegar no aeroporto, um susto que logo virou alívio. “O painel mostrava que todos os voos estavam cancelados, menos o meu”, diz. No terminal internacional da capital italiana, encontrou um cenário desolador. Muitos passageiros choravam por não ter mais opções de embarque. “Só acreditei que estava realmente indo embora no momento em que o avião levantou voo.”
Antes, Isabella já havia adaptado sua rotina à ordem de isolamento. “Nas primeiras notícias sobre o vírus, parecia algo distante, ninguém achava que chegaria tão perto.” Porém, ainda no fim de fevereiro, os números de novas infecções duplicaram de um dia para o outro. Ruas ficaram vazias, comércios fecharam, e a população enfrentava choques de realidade com a falta de leitos para tratamento dos infectados nos hospitais. “Um negócio horroroso e distópico. As pessoas começaram a ter ataques de pânico, piraram mesmo, de tanto medo. Os italianos entenderam que, caso os pais ou avós adoeçam, não vão mais encontrá-los, porque as visitas no hospital não são permitidas. Se morrerem, não podem nem fazer funeral. É tudo muito triste.”
Para ela, o maior desafio no olho do furacão foi manter a sanidade mental, sem perder de vista a boa condição física para poder viajar. “Tomei todos os cuidados bem antes de voltar ao Brasil. Sabia que, para sair de lá, eu tinha de estar saudável. Não me deixariam embarcar se eu estivesse doente ou apresentasse algum sintoma do coronavírus.” Isabella conta que, por ser uma cidade universitária, Bolonha se esvaziou na época do Carnaval e boa parte dos estudantes que haviam ido visitar a família no feriado não retornou. Ainda assim, ela foi parada em barreiras de vigilância a caminho do aeroporto. “Tive de provar que era bolsista estrangeira e estava voltando pra casa.”
Quando o Governo italiano anunciou o fechamento das universidades, na primeira semana de março, a Itália havia registrado 107 mortes pelo coronavírus. Atualmente, o país contabiliza quase 3.000 óbitos e mais de 35.000 casos de infecções. “O foco partiu da Lombardia, justamente a região mais desenvolvida, que, nem mesmo com estrutura, foi capaz de aguentar o surto. Médicos e enfermeiras estão morrendo. Outras regiões tiveram mais tempo de se preparar. Mas se a Lombardia não está dando conta, imagina o resto do país?”, aponta Isabella, que tem parentes na Puglia, Sul da Itália, e se preocupa com a expansão do vírus. “Assim que saiu o último decreto proibindo toda e qualquer locomoção, muitas pessoas fugiram do Norte para encontrar suas famílias. Em um dia, mais de 30.000 voltaram para Sicília. Como o povo se locomoveu, a tendência é de contaminação maciça.”
Restabelecida em São Paulo, a pesquisadora, embora sem apresentar sintomas do coronavírus, se impôs um confinamento voluntário dentro de casa. Só sai em casos de extrema necessidade, aproveitando horários de menor movimento no prédio onde vive, usa máscara, abre a porta das escadas com o cotovelo, não toca em nada com as mãos nem se comunica pessoalmente com os vizinhos. “Fugi da Itália e estou bem, mas não quero colocar ninguém em risco.” No entanto, relata estar fragilizada pelo turbilhão que vivenciou nas últimas semanas. “Me sinto esgotada física e emocionalmente. Não pude abraçar nem me despedir dos meus amigos na Itália. Ainda lembro do silêncio sepulcral no avião, o nó na garganta e o olhar vazio de quem quase ficou preso numa situação calamitosa.”
Observando quadro parecido, agora no Brasil, Isabella compara o isolamento em casa ao luto. Antes de ir para a Itália, ela havia perdido a mãe e, em sequência, a cadela de estimação. “A quarentena não deixa de ser uma espécie de retiro, um momento de autoavaliação, em que voltamos a fazer todas as tarefas mais básicas. É importante trabalhar bem o seu cérebro, mas, ao mesmo tempo, evitar poluí-lo com excesso de informação.” Ela espera que o Governo brasileiro tome a tempo as medidas necessárias contra a disseminação do vírus. “Por falta de leitos, os médicos na Itália precisam fazer escolhas difíceis, como atender um jovem ou um idoso”, diz. “O Brasil deveria se antecipar a esse dilema. Ainda podemos optar pelo sacrifício pessoal para salvar vidas.”