Crise do coronavírus põe à prova gargalo de UTIs no SUS
Governo Federal começa a distribuir novos leitos e aposta no cancelamento de cirurgias para garantir estrutura num sistema de saúde que já atua no limite de ocupação
O Brasil ―que já chega a marca de 234 infectados por coronavírus― começou timidamente a endurecer medidas de distanciamento social para evitar que muitas pessoas fiquem doentes ao mesmo tempo, sobrecarregando um sistema de saúde que já opera no limite, pelo menos em relação à assistência hospitalar intensiva. Os 32.000 leitos de UTI para adultos no país, divididos praticamente ao meio entre os sistemas público e privado, já funcionavam com mais de 80% de ocupação antes da pandemia. Esse percentual é o limite estabelecido pelo Ministério da Saúde para Estados e municípios levarem em conta na hora de medirem o colapso de suas redes e pedirem mais reforços ou decretarem quarentena, um isolamento mais duro de bairros e regiões inteiras com o objetivo de frear o contágio e conseguir tempo para que o sistema de saúde se recupere. Epidemiologistas estimam que 80% dos infectados pela covid-19 não terão sintomas relevantes, mas 15% poderão precisar de tratamento e 5% de internação em uma Unidade de Tratamento Intensivo.
Por enquanto, a maioria dos infectados no Brasil apresenta quadro clínico leve ou moderado da doença e está sendo tratada em casa. Há dois casos graves com internação em UTI no Distrito Federal e no Rio de Janeiro, além de pelo menos outras 16 pessoas hospitalizadas em leitos comuns. Mas especialistas projetam que a situação ainda controlada deve mudar rapidamente nas próximas duas semanas, considerando a escalada de contágio observada no Brasil. “Nossa previsão é que o início da crise mais grave, com maior demanda de leitos de UTI, deve acontecer daqui a até duas semanas. Esperem um mês de abril bastante difícil nesse sentido”, projeta Ederlon Rezende, membro do conselho consultivo da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) e diretor do serviço de terapia intensiva do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo.
A projeção das autoridades, com base na evolução do coronavírus em outros países, é de que uma a cada 20 pessoas com a doença deverá evoluir para um quadro clínico respiratório grave e precisará de UTI. O problema é que nem mesmo os Estados com redes hospitalares mais estruturadas em seus sistemas públicos de saúde têm condições de atender a um aumento exponencial da demanda sem reforços. “Os leitos de UTI estão permanentemente ocupados no país inteiro, quase todos com lista de espera inclusive judicializadas”, afirma Alberto Beltrame, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Se por um lado a demanda por outras doenças continua, a conta de leitos a serem repassados para tratar Covid-19 não é simples de fechar. Isso porque a maior parte dos hospitais não tem isolamento respiratório por leito e, portanto, não pode compartilhar sua UTI entre a demanda que já existe e a de pacientes com coronavírus. “Tenho essa limitação de usá-los por causa da contaminação”, explica Beltrame.
É por isso que, desde o mês de janeiro, os gestores de saúde articulam com o Ministério para conseguir leitos adicionais exclusivos aos pacientes graves com coronavírus. O Governo Federal contratou 2.000 deles (com base na quantidade que foi necessária durante o surto global de H1N1, em 2009) e começa amanhã a distribuir um primeiro lote de 540, que serão alocados nos Estados para que eles adaptem suas enfermarias e consigam garantir uma estrutura mínima de cuidados intensivos quando os casos graves forem aparecendo. O objetivo neste momento é garantir que cada Estado ―especialmente os que têm menor proporção de população― tenha ao menos um lote de 10 leitos de UTI exclusivos para Covid-19. É a estrutura mínima para enfrentar a doença, independentemente da rede atual que dispõem e do número de casos confirmados. Esses leitos estão garantidos por seis meses e podem ser renovados por mais seis.
Um segundo critério de distribuição leva em consideração tanto a concentração populacional quanto a explosão da doença. É por isso que São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro lideram o número de leitos extras a serem recebidos neste momento. “Nós tratamos de reserva técnica. Não levamos em conta cobertura de leitos de UTI. À medida que acontecer o primeiro caso, fecho um leito de enfermaria convencional e transformo aquele leito de UTI. Cabem até três leitos ali. No quarto caso, fecho outra enfermaria”, explica Beltrame.
Quando os Estados chegarem a 80% de ocupação dos leitos extras que dispõem, avisarão ao Ministério para solicitar mais leitos até chegar ao número de 2.000 já contratados. Beltrame explica que cada Estado deverá avaliar as ações conforme sua necessidade, inclusive avaliando a possibilidade de isolar UTIs inteiras apenas para o coronavírus. “É vestir um santo e desvestir outro”, alerta.
Tanto o Governo Federal quanto os Estados começam a se organizar para reduzir as elevadas taxas de ocupação de UTIs. Uma das estratégias é cancelar as cirurgias eletivas ―aquelas não emergenciais, como por exemplo plásticas e bariátricas—. E tentam também amenizar gargalos crônicos do SUS, como a escassez de insumos e de equipamentos. O desafio é ampliar essa capacidade de assistência rapidamente, antes que a doença exploda no país.
“Estamos trabalhando no limite em especial no SUS, onde temos uma margem de manobra muito menor”, afirma Rezende. Se na esfera privada a situação dos leitos de UTI já está longe de ser confortável ―há uma taxa de ocupação de 80% dos leitos de UTI―, no setor público é ainda pior. O SUS tem hoje a mesma quantidade de leitos para atender ao triplo de usuários, com uma taxa de ocupação entre 90% e 95%, alerta a AMIB.
Além da alocação de leitos de retaguarda, o Governo Federal se movimenta para garantir insumos e medicamentos, seja com isenção de impostos de importação ou editais para garantir estoque. E planeja atualizar as regras para admissão de pacientes nas unidades de terapia intensiva. Pacientes infectados com maior capacidade de recuperação poderão ter prioridade sobre pacientes de difícil recuperação, que teriam apenas cuidados paliativos, por exemplo. “Só vamos internar pacientes que vão ter benefícios usando esses leitos”, diz o secretário executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo dos Reis.
O Governo também considera a possibilidade de usar leitos de hospitais privados para atender pacientes do SUS, caso haja aumento exponencial da demanda. “Vamos regular. Queremos saber quem tem leito ocioso, onde eles estão e, se necessário, vamos requisitar leitos privados para o atendimento de pacientes do SUS”, afirma Gabbardo. A disponibilidade na esfera privada, porém, também não é confortável.
O sistema público de saúde tem uma distribuição assimétrica no país. Segundo a AMIB, as regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste já atuam com uma taxa de leitos menor do que o mínimo de um leito por 10.000 habitantes determinado pela Organização Mundial da Saúde. Beltrame diz que a distribuição de leitos de UTI exclusivos ao enfrentamento do coronavírus pelo Governo Federal não levou em conta esse dado. Neste momento, a ideia é garantir uma estrutura mínima para todos os Estados.
Os próprios Estados também já se articulam para reorganizar suas redes hospitalares. São Paulo, que virou o epicentro da crise no Brasil, receberá 80 leitos da União. O prefeito Bruno Covas disse nesta segunda-feira (16) que, em 20 dias, haverá 490 novos leitos de UTI na cidade.
Já o Rio de Janeiro, que o ministro Luiz Henrique Mandetta já disse ter uma das redes mais frágeis do Sudeste, planeja abrir 600 novos leitos de UTI nos próximos 60 dias. A Secretaria da Saúde do Estado também espera liberar entre 1.000 e 2.000 leitos hospitalares com o cancelamento de cirurgias não emergenciais. As decisões, porém, dependerão da evolução dos casos graves da doença. No momento, há um paciente em estado grave no Estado. O Rio de Janeiro receberá 40 leitos extras do Governo Federal.
O ambiente ainda é nebuloso, porque ninguém consegue prever exatamente quantos leitos serão necessários. Como os equipamentos são caros, ficará a cargo dos Governos decidir o momento de colocá-los em funcionamento. O Ministério da Saúde disponibilizou também recursos extras para que os Estados mantenham esses leitos de cuidados intensivos. E alguns deles já estão suspendendo férias de profissionais para manter suas equipes de saúde funcionando na máxima capacidade. “Nós estamos com pouco fôlego. Temos um sistema que atua no limite, mas com várias medidas tomadas para o aumento da demanda. Não é todo mundo que tem que ir ao pronto-socorro. A população precisa entender que temos todos que nos unir por um bem maior. Temos que reduzir o fluxo para frear o contágio”, finaliza Rezende.