“O que vou fazer com um colchão e sem casa?”, o drama dos desabrigados pelas chuvas em São Paulo

Moradores da zona leste perderam suas moradias nas enchentes e estão alojados em escolas da região. Temem voltar para a casa e, em seguida, serem expulsos novamente pela água

Ana Paula (à esquerda) com filhos e amiga na escola que recebe doações para desabrigados na zona leste de São Paulo.Renato Pizzutto
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Ana Paula dos Santos, dona de casa e mãe de sete filhos, não consegue voltar para casa há quatro dias. Moradora da comunidade Terra Prometida, no bairro de Jardim Helena, zona leste de São Paulo, ela ficou desabrigada e perdeu todos os pertences no temporal que atingiu a cidade na última segunda-feira. Na entrada da Escola Estadual Heckel Tavares, um dos lugares na região que serve de abrigo para quem precisou sair de casa, ela conta o que passou: “Perdi roupas, móveis, fogão, geladeira, tudo. Estou esperando secar para voltar porque tem até rato lá agora”. Ana Paula segura no colo o filho mais novo, Isaías, de três meses, enquanto espera o mais velho, Ronald, voltar da fila montada pela Prefeitura com uma cesta básica para a família. Olhando para outra filha, que se senta ao lado de um dos caminhões carregados de colchões que chegou à escola, a dona de casa se mostra esperançosa. “O que nós conquistamos, podemos conquistar de novo. Deus dá força para nos recuperarmos”.

Ana Paula é uma entre os centenas de desabrigados no distrito de São Miguel Paulista que no final da última semana ainda não haviam conseguido voltar para casa depois das enchentes de segunda-feira. Os números são levantados pelos próprios moradores, uma vez que a Subprefeitura do distrito diz ainda não ter feito cálculos com a Defesa Civil, uma vez que “a prioridade de todas as equipes está no fornecimento de insumos” segundo eles. Os desabrigados estão divididos entre a Heckel Tavares e a Escola Municipal Mururés, no mesmo bairro, onde eles comem, dormem e recebem doações. Segundo os moradores, aproximadamente 100 pessoas ainda dormiam no prédio da Heckel na quinta-feira mas, na segunda anterior, no auge dos problemas, o número chegou a 300 em ambas as escolas. Jardim Helena, Jardim Lapena e Jardim Pantanal, todos localizados nas proximidades do rio Tietê, estão entre os bairros mais afetados da zona leste. De acordo com a Subprefeitura de São Miguel Paulista, o distrito ainda conta com “alguns pontos de alagamento”, em levantamento também impreciso. Uma volta pelos bairros atesta a gravidade da situação pela qual os moradores passaram: são incontáveis as casas e barracos construídos às margens do rio e seus córregos afluentes, que ainda apresentam um nível de água considerável depois de três dias secos. “Minha casa fica a 150 metros do rio e a água só está baixando hoje [quinta-feira]”, relata Aline Silva, outra desabrigada.

Em toda a cidade, a Prefeitura de São Paulo contabiliza 1.166 famílias desabrigadas que foram atendidas pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), responsável por oferecer acolhimento e insumos aos necessitados. A SMADS afirma ter distribuído mais de 2.000 colchões e cobertores, além de 790 cestas básicas e 732 kits de higiene. Ao contrário da Subprefeitura de São Miguel, o órgão municipal afirmou que na quinta-feira já não havia mais pontos de alagamento na capital —eram 132 locais registrados três dias antes. A cidade de São Paulo também não computou nenhuma vítima fatal das enchentes, mas uma pessoa morreu em São Bernardo, uma em Marília e três em Botucatu, onde um homem ainda está desaparecido.

O jovem Alef Lima, morador da Terra Prometida, foi quem bateu na porta da escola para pedir ajuda aos desabrigados na segunda-feira. “Na primeira noite não tinha colchão para todo mundo. Muita gente dormiu na mesa”, conta. Ele relata que as salas de aulas foram separadas de forma a dividir os dormitórios de homens e mulheres, e que eles próprios trabalham na cozinha para servir café da manhã, almoço, café da tarde e janta. Eles também recebem almoços prontos como doação dos restaurantes da redondeza. Alef, que terminou o ensino médio e não teve condições de iniciar um curso superior, ajuda principalmente nas tarefas braçais dentro do abrigo. Ele é filho de Adailzo Assis, membro da comissão formada para organizar as famílias desabrigadas da comunidade onde vivem. Adailzo diz ter um acordo com a escola “por tempo indeterminado”, mas não sabe até quando poderão ficar lá. “Não tem só nossa comunidade aqui e não sei qual acordo a diretora fez com as outras”, se preocupa. A diretora da escola não autorizou a entrada da reportagem no abrigo e nem quis dar entrevista.

Área interna da escola estadual Heckel Tavares, onde os desabrigados dormem.REPRODUÇÃO

A Prefeitura esteve na escola na quarta-feira para fazer o cadastramento das famílias e distribuir colchões e kits de higiene. Até a última sexta, continuaram as entregas de cestas básicas pela região. Adailzo diz que os moradores têm o suficiente até domingo, mas que a maior parte das doações veio de “pessoas comuns e ONGs”. “Muita gente já poderia voltar para casa, mas fica pela comida porque perderam tudo. Precisamos ver a situação dessas pessoas com a Prefeitura, porque o problema vai além de ficar distribuindo cesta básica”, afirma o morador.

“Não quero colchão e cesta básica, quero bolsa aluguel”

Aline Silva mora no Jardim Helena há um ano e terminou de construir sua casa em dezembro do ano passado. “Foi dinheiro jogado no lixo”, comenta a respeito da enchente que alagou sua moradia e levou todos os seus pertences. Desempregada e mãe de dois filhos, ela espera contornar a situação através da pensão que recebe do ex-marido. “É tudo muito desesperador”, afirma ela, que descreve a situação na escola como “caótica”.

Aline reclama das providências adotadas pela Prefeitura e demais órgãos municipais na última semana. “São medidas paliativas. O que eu vou fazer com o colchão que ganhei se não tenho casa? Morar na rua?”, desabafa. “Não existe prevenção, eles agem de acordo com os problemas. Não quero um colchão e duas cestas, quero uma bolsa aluguel porque fomos vítimas de um desastre natural e temos direito a isso. Vamos voltar para as casas que vão alagar de novo com outras chuvas. Estamos vulneráveis e não temos condições de sair daqui”. Ao lado das filhas, Aline se emociona ao vislumbrar o futuro. “A Prefeitura está se lascando para a gente. E se eles não comprarem briga, nada acontece. Então estamos ao Deus dará”.

Aline Souza em frente à escola.Renato Pizzutto

Em resposta, a Prefeitura diz que 2.448 famílias já foram removidas da região da Várzea do Tietê, que contempla boa parte da zona leste, e recebem auxílio aluguel no valor de 400 reais. A Secretaria Municipal de Habitação informa que concluirá em maio as obras do empreendimento Manuel Bueno, no Itaim Paulista, que vai contar com 600 unidades habitacionais, das quais 300 “atenderão às famílias removidas em áreas de risco de alagamento”, especialmente nas regiões do Jardim Pantanal, Jardim Lapena, Jardim Damasceno e Comunidade da Tribo. Além disso, outra ação disponível possibilita a isenção ou remissão de IPTU para imóveis que sofreram danos com enchentes e alagamentos. Neste caso, a solicitação do morador deve ser protocolada na Subprefeitura até o último dia útil do ano em que ocorreu a enchente.

“E se eu voltar para casa e chover outra vez? Vou fazer o que?”, questiona Aline. Marcelo Schneider, meteorólogo do Instituto Nacional de Meteorologia, afirma que na previsão do tempo para os próximos dias constam algumas chuvas locais e pancadas mais fortes, mas sem a mesma proporção do temporal de segunda-feira. “Temos boas chances de antecipar, tanto que prevemos essa última cinco dias antes de acontecer. Não é o caso agora”, diz. Nesse temporal, o Inmet registrou 157 mm de chuva na cidade de São Paulo, número menor apenas que em oito ocasiões desde 1943, quando o volume passou a ser medido pelo Instituto. “Algumas situações específicas agravaram as enchentes, como as chuvas caindo em toda a grande São Paulo, incluindo áreas próximas ao rio Tietê, e não apenas a enxurrada local à qual estamos acostumados. Tudo aconteceu em um curto período de tempo e em áreas que já estavam com o solo úmido, o que aumenta as chances de enchentes”, explica. Apesar do mês de fevereiro já ser o com o maior volume chuvoso desde 1999, Schneider garante que a cidade não deve sofrer com chuvas da mesma proporção nos próximos dias.

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