Olavismo dita o tom do Brasil na crise entre EUA e Irã e amarra país a destino de Trump
Coadjuvante no conflito, país arrisca décadas de boas relações diplomáticas e comerciais com o mundo árabe e consolida ruptura inédita no Itamaraty
Na arena internacional, o Brasil tem apenas um lado: o dos Estados Unidos. Desde que assumiu a presidência da República, Jair Bolsonaro vem promovendo o alinhamento automático com a principal potência econômica e militar do planeta, comandada pelo magnata Donald Trump que provoca incômodo inclusive na cúpula militar. Nesta quarta-feira, o presidente fez uma transmissão ao vivo nas redes sociais apenas para exibir que assistia ao discurso de Trump na televisão. Enquanto o norte-americano usava palavras para evitar uma escalada no conflito, que mudou de patamar com a decisão da Casa Branca de matar o general do Irã Quasem Soleimani no Iraque, Bolsonaro afirmou que o Brasil deve repudiar o terrorismo, como determina a Constituição Federal, e aproveitou para criticar o Governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por se aproximar de Teerã e tentar mediar um acordo nuclear com os EUA em 2009. Foi mais um gesto para consolidar o giro na política externa brasileira implementada por seu Governo. Na sexta, 3 de janeiro, o respaldo incondicional do Itamaraty à ação militar norte-americana ficou evidente em nota do Itamaraty que acusou várias vezes Soleimani de ser terrorista. Também em tom elevado, Bolsonaro endossou a retórica norte-americana ao afirmar, na segunda-feira, que Soleimani “não era general”.
A tomada de posição à favor dos EUA indica que a ala radical do Governo Bolsonaro, formada por seguidores do ideólogo ultraconservador Olavo de Carvalho que patrocionou Ernesto Araújo no posto de chanceler, é preponderante na condução das relações exteriores brasileiras. “Para eles, o alinhamento com Trump é o principal interesse brasileiro neste momento. Não estamos falando de ganhos tangíveis, mas da tentativa de reconstituir a imagem do Brasil associada à dos Estados Unidos”, explica Guilherme Casarões, professor da FGV de Ciências Políticas e Relações Internacionais. Na nota divulgada pelo Itamaraty (ministério das Relações Exteriores) no dia do ataque, o Governo manifestou o seu “apoio à luta contra o flagelo do terrorismo e reitera que essa luta requer a cooperação de toda a comunidade internacional”, de modo que “o Brasil está igualmente pronto a participar de esforços internacionais que contribuam para evitar uma escalada de conflitos neste momento”. O documento também afirma que “o terrorismo não pode ser considerado um problema restrito ao Oriente Médio e aos países desenvolvidos, e o Brasil não pode permanecer indiferente a essa ameaça, que afeta inclusive a América do Sul”.
“Nesse sentido, a nota do Itamaraty é coerente, pois endossa a ação militar de Trump e coloca o Brasil como parte da chamada guerra ao terror (lembrando que, em outros tempos, o Brasil não considerava o terrorismo como prioridade estratégica)”, completa Casarões. O documento também reflete a perda de influência dos militares na condução da política externa. Se aparentavam ter algum papel moderador no início do ano passado, quando atuaram para apaziguar a posição brasileira na crise venezuelana, agora não conseguiram convencer Bolsonaro, nos bastidores, a não adotar uma posição favorável ou contrária a qualquer dos lados do conflito, segundo noticiou o portal UOL. “A demissão do general Santos Cruz [que era ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência do Brasil], em certo sentido, foi um divisor de águas, marcando a total preponderância olavista no seio da política externa”, opina Casarões.
As implicações são mais profundas do que aparentam: para o especialista, o alinhamento aos interesses norte-americanos no conflito com o Irã também representa uma ruptura, já anunciada pelo chanceler Ernesto Araújo, com a tradição diplomática brasileira, baseada nos princípios do pacifismo, do multilateralismo e do universalismo. Ele ressalta ainda que o Brasil "sempre se recusou a participar de conflitos internacionais, sempre defendeu o estrito respeito ao direito internacional e sempre buscou manter boas relações com todos os países do mundo”. Diante desse cenário, e também considerando que tradição diplomática brasileira “sempre foi motivo de respeito internacional”, ele acredita "ser prejudicial abandonarmos uma postura moderada em benefício da relação com os EUA”.
Convocação de diplomata
Após a divulgação da nota do Itamaraty, o Governo do Irã convocou Maria Cristina Lopes, encarregada de negócios da missão do Brasil em Teerã, a dar explicações. Segundo informou o jornal Folha de S. Paulo, Lopes ― que compareceu à reunião porque o titular da missão diplomática brasileira está de férias ― afirmou que a nota do Itamaraty não era uma condenação contra o Irã. Também ressaltou que as relações dos países são amplas e abrangem outras áreas. “O uso da palavra terrorismo na declaração do governo brasileiro foi muito ambíguo. Não fica claro se o Itamaraty se refere a grupos específicos ou ao próprio governo iraniano. Isso causa muita estranheza em Teerã, porque é uma acusação extremamente grave contra outro Estado”, explica a cientista social Adriana Erthal Abdenur, especialista em Relações Internacionais e integrante do Comitê de Política de Desenvolvimento das Nações Unidas. Nesta quarta-feira, o Itamaraty cancelou uma reunião entre Lopes e autoridades iranianas para discutir temas da cooperação cultural entre os dois países, segundo notificou a Folha.
Os resultados da postura brasileira em suas relações com o Irã e outros países do Oriente Médio ainda estão por ver. Do ponto de vista comercial, Abdenur explica que o Brasil “já não depende mais das importações de petróleo do Oriente Médio”, como durante as crises geopolíticas dos anos de 1970 que resultaram no aumento abrupto do preço do barril. Além disso, ressalta que o Brasil “tem mantido uma postura bastante pragmática na construção das suas relações econômicas com os países da região, inclusive com o Irã”. Apesar de que a postura do atual Governo tem potencial para colocar em xeque essas relações comerciais, “que têm muito potencial de crescimento”, ela lembra que o próprio Bolsonaro flexibilizou a postura brasileira. Na terça-feira, dia 7 de dezembro, o mandatário garantiu que o Brasil irá manter suas relações comerciais com o Irã, comprador de milho, carne e soja. “Além disso, o governo iraniano parece não levar muito a sério as declarações do Governo brasileiro, resumindo sua reação a convocação da encarregada de negócios para explicar o posicionamento do Itamaraty", argumenta. "Acho que só um agravamento dessa situação e um alinhamento ainda maior com os EUA colocaria em xeque as relações comercias com o Irã. O Brasil é, por enquanto, um coadjuvante de pouca visibilidade nesse conflito incipiente”, opina.
Consequências políticas e diplomáticas
As consequências políticas e diplomáticas, ainda incertas, parecem causar mais preocupação. Apesar da aproximação promovida pelo Governo Lula, as relações entre Brasil e Irã nunca foram de “extrema proximidade”; ao mesmo tempo, sempre estiveram marcadas por “certa cordialidade pragmática”, explica Abdenur. Esse histórico acaba sendo colocado em xeque quando, por exemplo, Bolsonaro questiona se o general morto era de fato um general. “Ele está ofendendo boa parte da população iraniana que enxerga ele como liderança militar nacional. E esse efeito é exacerbado pelo ataque, porque existe um efeito de reunificação”, afirma a especialista. O uso do termo “terrorismo” para se referir ao ataque dos EUA que matou Soleimani também podem acabar não sendo bem recebido por outros países da região, sobretudo os que estão sob forte influência do Irã. “Eles raramente atuam em bloco. Há vários desafios de coordenação de política e de cooperação, uma vez que estão divididos por interesses geopolíticos e geoeconômicos. Mas é bom lembrar que há certos precedentes, e eles já agiram coletivamente à provocações externas. Um exemplo anterior foi quando o Governo Bolsonaro anunciou que iria transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. Houve uma série de convocações e declarações naquele período”.
Abdenur também opina que, do ponto de vista da segurança e da defesa, o alinhamento automático com os EUA também não traz benefícios. Muito pelo contrário. “Os Estados Unidos não saem vitoriosos de uma guerra desde 1945, e até a suposta vitoria tática que representou a derrubada de Saddam Hussein em 2003 levou, verdade, ao período de maior instabilidade e conflito ao Oriente Médio”, explica. Nesse sentido, seu argumento vai de encontro ao de Casarões no que se refere a uma quebra na tradição diplomática brasileira: “Ao se posicionar a favor do ataque norte-americano, que fere o Direito Internacional, o Brasil assume uma postura contraditória e incoerente com seu histórico de defesa da soberania nacional e, sobretudo, da resolução de conflitos por meio do multilateralismo, via mecanismos das Nações Unidas”, argumenta. “Do meu ponto de vista, esse alinhamento representa uma guinada negativa”.
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