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Expansão da Marinha chinesa coloca os EUA em alerta

Ambição de Pequim em dominar o Pacífico inquieta Washington, enquanto o país asiático aumenta em 130% seu investimento militar em uma década

O presidente chinês, Xi Jinping, cumprimenta marinheiros no porto de Sanya, na província meridional de Hainan, em 17 de dezembro.
O presidente chinês, Xi Jinping, cumprimenta marinheiros no porto de Sanya, na província meridional de Hainan, em 17 de dezembro.Li Gang (AP)

Quando a China construiu em 1974 seu primeiro submarino nuclear (o 091), mais do que inquietar, provocou piadas no Ocidente. Encomendado por Mao 16 anos antes, além de ineficiente, emitia ruídos insuportáveis e altos níveis de radiação. Alguns analistas afirmaram que era mais perigoso a sua tripulação do que para o restante do planeta. Menos de meio século depois, os passos de gigante do Exército chinês e a ambição de Pequim em dominar o Pacífico significam uma dor de cabeça em Washington.

O país há anos está imerso em um processo de transformação de suas Forças Armadas. Coincidindo com seu crescimento econômico, o aumento do gasto militar nos últimos anos —quase 10 vezes maior do que em meados dos anos noventa, de acordo com dados do Instituto Internacional de Estocolmo para a Pesquisa da Paz (SIPRI)— permitiu um desenvolvimento exponencial de suas capacidades, fundamentalmente focado no Exército do Ar e na Marinha. Há tempos, o Pentágono não esconde sua preocupação pela vulnerabilidade das tropas norte-americanas no Pacífico e a crescente ameaça sofrida por aliados como o Japão e Taiwan. Números reunidos pela Reuters revelam que desde 2014 a China —que, de acordo com dados do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), com sede em Londres, possui um Exército de 2.035.000 efetivos na ativa, dos quais 250.000 pertencem à Marinha — construiu mais navios de guerra, submarinos, barcos de apoio e anfíbios que o total da frota britânica. Os especialistas, entretanto, assinalam que essa força é relativa. Pequim ainda se vê prejudicada por sua falta de experiência e uma capacidade nuclear menor do que a do restante das principais potências (EUA, Rússia, Reino Unido e França).

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Com o objetivo de completar a modernização do Exército Popular de Libertação (EPL) para 2035 e de transformá-lo em “força de classe mundial” para 2049 (um compromisso adquirido pelo presidente Xi Jinping no XIX congresso do Partido Comunista Chinês realizado em 2017), o gasto militar do país em 2018 chegou a quase 250 bilhões de dólares (1,01 trilhão de reais), mais do que a França, Rússia e o Reino Unido juntos, e superado somente pelos EUA, com 649 bilhões de dólares (2,60 trilhões de reais). Os dados do SIPRI mostram que o investimento da China em defesa aumentou 130% na última década. Apesar de aumentar em relação ao ano anterior, os EUA se mantiveram em 2018 ainda abaixo dos níveis de 10 anos atrás, quando os conflitos no Iraque e Afeganistão elevavam o gasto.

A questão naval ocupa a maior parte do último relatório do Departamento de Defesa dos EUA sobre o poderio militar chinês. O documento destaca que Pequim é capaz de destruir com mísseis DF-21 qualquer barco (incluindo porta-aviões) que navegue a menos de 1.500 quilômetros de suas costas. O relatório também afirma que a nova posição hegemônica da China significa uma ameaça às tropas norte-americanas da região, principalmente em pontos vitais como o estreito de Taiwan. O texto reconhece que o poderio militar chinês se reflete no fato de que, desde 2016, quase um terço dos aliados com os quais contava Taiwan preferiu trair Taipei e estabelecer relações com Pequim. O Japão, outro aliado principal de Washington, também sente cada vez mais a proximidade da China, com quem disputa a soberania das ilhas Senkaku, patrulhadas com frequência cada vez maior pelo EPL.

A criação de ilhotas artificiais no Pacífico significou um ponto de inflexão. Em 2013, a China começou a construir as ilhas Spratly e as Paracelso, em uma região que, além de ser uma via principal do comércio marítimo internacional, possui importantes reservas de petróleo e gás. A Malásia, Vietnã, Taiwan, Filipinas e Brunei também afirmam ter direitos sobre essas águas. As ilhotas artificiais —A Grande Muralha de Areia, como as chamou em 2015 o comandante-chefe dos EUA no Pacífico— são utilizadas por Pequim como bases militares, de lançamento e depósitos de armas.

“Tradicionalmente, a Marinha do EPL focou nas operações no litoral da China, defendendo os pedidos de soberania no mar do Sul da China e ao redor de Taiwan. A estratégia militar de 2015 agora faz com que a Marinha mude gradualmente seu foco de defesa de águas costeiras para desenvolver capacidades de proteção de poder de maior alcance para defender os interesses políticos e econômicos internacionais da China”, diz por e-mail Henry Boyd, pesquisador para defesa e análise militar do IISS.

Agora, “as forças da Marinha do EPL são principalmente quantitativas e tecnológicas: equiparam uma impressionante quantidade de grandes navios de guerra modernos com sistemas avançados de mísseis antinavios e mísseis terra-ar na última década”, afirma Boyd. Tomando como base os dados atualizados do Military Balance, elaborado pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, o especialista diz que a Marinha chinesa tem em serviço quatro submarinos de mísseis balísticos, 54 submarinos de ataque (dos quais seis são de propulsão nuclear), um porta-aviões, 81 cruzeiros, destroiers e fragatas, além de seis grandes barcos anfíbios. A Marinha dos EUA, por sua vez, tem 14 submarinos de mísseis balísticos, 53 submarinos de ataque (todos de propulsão nuclear), 11 porta-aviões —mais do que todos os outros países juntos—, 110 cruzeiros, destroiers e fragatas e 32 grandes navios anfíbios em serviço.

O submarino nuclear “é uma das armas estratégicas de maior importância dentro da Marinha chinesa”, diz Tong Zhao, especialista em segurança nuclear do Carnegie-Tsinghua Center for Global Policy. Atualmente, os seis submarinos têm capacidade para 12 mísseis balísticos e pertencem à segunda geração de submarinos nucleares, os chamados classe 094. “A China, acredita-se, está desenvolvendo a terceira geração de mísseis balísticos lançados de submarino, os JL-3, um tipo de projétil que pode voar a uma distância maior do que os atuais e ser capaz de liberar uma carga mais pesada”. O especialista admite, entretanto, que esses submarinos “não podem ser comparados” aos norte-americanos. “Os Estados Unidos, Rússia, Reno Unido e França os desenvolveram muito antes. A capacidade da China ainda não é tão boa como a das outras quatro potências e neste campo os EUA possuem as tecnologias mais avançadas. Mas a distância está diminuindo pela quantidade de recursos que Pequim continua investindo”, alerta.

“Ainda que a Marinha chinesa produza mais navios do que a Marinha dos EUA a cada ano, os barcos chineses são geralmente menores e menos capazes”, diz Siemon T. Wezeman, pesquisador principal do programa de armamento e gasto militar do SIPRI. “Um exemplo, a China começou a introduzir seu segundo porta-aviões e é da metade do tamanho do que o norte-americano”.

Entre suas vantagens, a China possui uma importante frota de barcos costeiros, diz Wezeman. Para Fernando Delage, professor de relações internacionais da Universidade Loyola, outra das forças está no desenvolvimento de uma série de portos que, sob aparência civil, podem servir de instalação de apoio logístico à Marinha chinesa. “Isso significa Birmânia [atual Myanmar], Sri Lanka, Paquistão e Djibuti [no Chifre da África], onde já tem uma base há dois anos”, a primeira no exterior.

As fraquezas da Marinha, por outro lado, “estão no capital humano, a organização e doutrina”, afirma Boyd. “A Marinha do EPL tem uma experiência operacional e institucional relativamente limitada em operações navais complexas em grande escala”, diz. Segundo Siemon T. Wezeman, a Marinha chinesa “não está acostumada a operar fora da primeira cadeia de ilhas [ilhas sulistas das Curilas, o arquipélago japonês, Taiwan, o norte das Filipinas e a ilha de Bornéu] e, portanto, trabalha muito próxima à costa chinesa”. Também não tem experiência em operações com outros setores do Exército, afirma o especialista.

Mas mesmo que a Marinha norte-americana ainda seja, de longe, a mais poderosa, a China não precisa ter 11 porta-aviões como os EUA para impedir o acesso ao Mar da China Meridional, afirma Delage. “Hoje basta possuir mísseis antinavios, que são infinitamente mais baratos do que um porta-aviões e que têm a capacidade para destruir, em caso de conflito, um barco americano”, aponta.

“Os EUA estão preocupados que os esforços de modernização da Marinha do EPL possam ter diminuído a distância qualitativa entre as duas forças ao ponto de que, em um cenário de conflito, a Marinha norte-americana lutaria para operar de maneira oportuna e efetiva nas águas litorâneas ao redor da China sem ter perdas muito altas em navios e vidas”, conclui Henry Boyd.

Quatro décadas para transformar um Exército

A transformação das Forças Armadas chinesas começou há quatro décadas. Siemon T. Wezeman, pesquisador principal do programa de armamento e gasto militar do SIPRI, coloca seu início nos anos oitenta, sendo um dos detonadores a derrota em 1979 na guerra com o Vietnã. No começo foi um processo lento, "a economia ainda não havia decolado e os países do Ocidente não queriam fornecer equipamento. Após o colapso da União Soviética, as relações com a Rússia melhoraram e a economia da China acelerou", diz o especialista.

Outro desencadeador foi a crise desatada entre 1995 e 1996 no estreito de Taiwan —que separa a China continental da ilha de Taiwan—. Quando o presidente Bill Clinton enviou dois porta-aviões como resposta ao lançamento de mísseis balísticos sobre o estreito, "Pequim percebeu que suas capacidades eram nulas ou quase inexistentes", diz Fernando Delage, professor de relações internacionais da Universidade Loyola.

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