Governo da Bolívia anula o decreto que permitia aos militares reprimir os protestos
Negociações com os manifestantes conseguem a suspensão da ordem, sob a qual foram cometidos pelos menos dois atos graves de repressão que deixaram 19 mortos
A presidenta da Bolívia, Jeanine Áñez, anulou na quinta-feira o decreto que eximia os militares de responsabilidade penal na repressão dos protestos que abalaram o país nas últimas semanas. As Forças Armadas pediram uma lei que respaldasse sua intervenção nas manifestações após as eleições de 20 de outubro. Mas 14 dias depois de sua aprovação, os acordos feitos nas negociações que o Executivo mantém com os manifestantes provocou sua revogação. Os oposicionistas, que durante várias semanas foram às ruas das cidades bolivianas, começaram pedindo a renúncia da presidenta e acabaram aceitando desmobilizar-se em troca da suspensão do decreto. Também pediram compensações econômicas pelos 35 mortos e centenas de feridos causados pela repressão militar e os confrontos entre os dois lados nos quais o país se dividiu após a saída de Evo Morales do poder.
Protegidos sob o decreto que acaba de ser anulado, as forças de segurança reprimiram duramente os manifestantes. Em 15 de novembro, um grupo de cocaleiros que tentava ir de Sacaba a Cochabamba, a poucos quilômetros de distância, foi detido por membros da polícia e do Exército. Nove camponeses morreram e dezenas ficaram feridos à bala. Em 19 de novembro, 10 manifestantes morreram baleados após derrubarem o muro da refinaria de Senkata localizada em El Alto que haviam bloqueado anteriormente após enfrentar as forças de segurança.
Após o ocorrido, Áñez agradeceu às Forças Armadas por ter impedido um atentado contra a refinaria. “El Alto viveu dias de terror quando as vidas de mais de 250.000 moradores da cidade foram colocadas em risco. A tragédia teria alcançado dimensões devastadoras”, disse a presidenta. Antes, o ministro da Defesa afirmou que os soldados não haviam disparado “um só tiro” contra a população.
Os manifestantes de Senkata, entrevistados pelo EL PAÍS, negam ter usado dinamite no protesto, como afirma o Governo. “Querem nos animalizar, dizem que queríamos explodir a refinaria, como se não soubéssemos que isso mataria a todos nós”, afirmou uma das participantes na manifestação.
Sem bloqueios
A negociação do Governo com os manifestantes fez com que, quase três semanas depois da renúncia forçada de Morales, já não existam bloqueios de estradas e ruas em nenhum ponto do território. “Graças a Deus e à compreensão de todos os setores conseguimos a pacificação do país”, disse Áñez. Em El Alto, única cidade que resistiu ao novo Executivo, os dirigentes que pediam para que a luta continuasse não conseguiram convencer os moradores desesperados para voltar a trabalhar após quase um mês de protestos e bloqueios.
Apesar de Evo Morales ter dito que somente ele poderia deter os movimentos sociais, os protestos acabaram sem a intervenção do ex-presidente. De fato, o ex-vice-presidente Álvaro García Linera prognosticou que ocorreria um “levantamento indígena” pela queda do poder do Movimento ao Socialismo (MAS).
Enquanto seus principais representantes estão presos, investigados judicialmente e “presos” na Embaixada do México em La Paz, o MAS perdeu o controle de muitas das organizações de El Alto e de vários sindicatos. Os cocaleiros de Chapare continuam reconhecendo seu líder sindical, Evo Morales, como presidente do país, mas também acabaram com os bloqueios pelo cansaço acumulado.
No Parlamento, agora sem representantes destacados do MAS, o partido de Evo Morales se juntou a várias iniciativas governistas, o que possibilitou que a lei para convocação de eleições em abril ou maio do próximo ano fosse aprovada por unanimidade. Morales também não se pronunciou a respeito.
O Governo de Áñez investiga por terrorismo e sedição vários ex-ministros e colaboradores de Morales que estão asilados na Embaixada do México, de modo que não permitirá que abandonem o país. Veículos de comunicação governistas relacionaram esse comportamento com o do Executivo de Morales em 2012 com o senador oposicionista Roger Pinto, que ficou preso 15 meses na Embaixada do Brasil, de onde por fim saiu clandestinamente.
O próprio Morales é investigado por terrorismo e sedição, por supostamente organizar de seu asilo no México os bloqueios nas estradas que agora foram suspensos. O ex-presidente afirmou nessa semana que a Interpol emitiu uma notificação azul contra ele, uma ordem que serve para solicitar informação sobre o paradeiro e as atividades de uma pessoa. Mas a Promotoria boliviana negou tal fato na quinta-feira.
Nesse contexto, o ministro de Governo, Arturo Murillo, ameaçou na sexta-feira uma comissão de ativistas argentino que foi à Bolívia observar a situação política de perto e chamou o ocorrido de “golpe de Estado”. “Andem com cuidado, estamos observando vocês, estamos seguindo vocês”, disse a eles. A comissão também foi agredida verbalmente durante a escala de seu voo em Santa Cruz.
Por outro lado, as transmissões das redes de televisão Telesur e Rusia Today foram eliminadas dos sistemas de tevê a cabo do país. Em numerosas instituições públicas, o Governo abriu investigações sobre supostas irregularidades da Administração anterior.
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