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Liga das Canelas Pretas, o torneio antirracista nos primórdios do futebol gaúcho

Apelido surgiu para caracterizar a associação alternativa fundada por clubes negros de Porto Alegre no início do século XX, quando suas participações entre os campeonatos de elite eram vetadas

Cruzeirinho de Novo Hamburgo, um dos times que participou da Liga Nacional de Futebol Porto-Alegrense.
Cruzeirinho de Novo Hamburgo, um dos times que participou da Liga Nacional de Futebol Porto-Alegrense.REPRODUÇÃO
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Nos primeiros anos do campeonato gaúcho, o Grêmio venceu cinco títulos, iniciando a superioridade estadual que tornaria o clube conhecido nacionalmente. Se a equipe de Porto Alegre chegou ao auge da sua história no tricampeonato da Libertadores em 2017 com Cortez, Jaílson, Luan e Fernandinho no time titular, uma rápida consulta às fotos dos elencos campeões no início do século, mais precisamente a partir de 1919, revela um time sem negros. Assim como no Rio de Janeiro, onde a federação local proibiu o registro de atletas "de cor" no início do século XX, e em São Paulo, onde Friedenreich foi boicotado pela seleção brasileira pelas suas origens, o racismo era institucionalizado no Rio Grande do Sul, onde as principais ligas de futebol não permitiam as inscrições de clubes formados por negros e operários nos primeiros campeonatos organizados do estado. A solução entre os vetados foi, então, fundar uma associação alternativa voltada às classes mais populares da cidade.

Assim criaram a Liga Nacional de Futebol Porto-Alegrense (LNFP), que teve seu primeiro campeonato organizado em 13 de maio de 1920. Posteriormente, a associação se popularizou com o apelido de Liga das Canelas Pretas. “Esse nome pejorativo nunca constou nos jornais”, esclarece José Antônio dos Santos, historiador e escritor do livro Liga da Canela Preta: a história do negro no futebol. “Possivelmente, essa memória foi criada nas décadas seguintes a partir de relatos daqueles que conheceram clubes e associações envolvidas. E se manteve ao longo do tempo sem qualquer pesquisa”, afirma.

De acordo com o estudo do historiador, a expressão “canela preta” não consta em nenhum registro da época, mas a associação se tornou conhecida somente com essa alcunha. E tampouco houve a organização de um campeonato periódico e definido pela LNFP como o gaúcho, mas sim alguns torneios promovidos durante as décadas de 20 e 30. “Diversos clubes participaram em momentos diferentes e não existiu só uma liga, mas várias ao mesmo tempo e com pouca perenidade”, explica Santos. Alguns clubes que se destacaram foram Rio Grandense, Bento Gonçalves, Cruzeirinho, Primavera e Oito de Setembro, entre outros. O pesquisador do Museu do Internacional, César Caramês, acrescenta que o nome original da Liga tinha como objetivo se contrapor aos times de elite formados por imigrantes: “Ao reivindicar a expressão ‘nacional’, a comunidade negra reivindicava também uma origem para si, que seria o seu nascimento em solo brasileiro”.

O Livro de José Santos.
O Livro de José Santos.DIVULGAÇÃO

José Santos reforça que, como os clubes da LNFP se desenvolveram ao mesmo tempo que os times da elite gaúcha, o nível das equipes negras não era pior do que as mais tradicionais. Para o escritor, os jogadores da Liga ainda tiveram a vantagem pela forma como começaram a praticar o esporte. “O aprendizado do futebol foi se dando de forma independente, mais lúdica e intensa, o que levou os negros e pobres, genericamente, a jogarem até melhor [que os outros]”, opina.

“A existência da Liga rompeu as barreiras existentes à medida que o desporto deixou de lado o caráter amador e de lazer, dando lugar à crescente profissionalização”, complementa Caramês. O futebol gaúcho se tornou profissional em 1940, mas o processo teve seu início dez anos antes. Quando o esporte passou a ser visto sob a ótica financeira, o preconceito deu lugar à necessidade de ter os melhores atletas, o que proporcionou a entrada de negros nas equipes mais ricas e o esvaziamento dos torneios da Liga Nacional. “Não foi uma extinção, e sim um processo complexo de modificação da estrutura e do crescimento do esporte que passou a ser dominado pela mídia e pelos dirigentes das elites”, explica Santos.

O primeiro jogador negro a atuar pelo Internacional de Porto Alegre foi Dirceu Alves, em 1928. Conforme garante César Caramês, o Inter foi uma entre várias equipes que abriram portas para um processo “irreversível” de inclusão. O registro é posterior ao do Grêmio, que teve o primeiro negro defendendo suas cores, Antunes, em 1912. No entanto, o clube colorado passou a se identificar mais com a pauta de combate ao racismo a partir da formação da equipe conhecida como “Rolo Compressor”, que faturou oito campeonatos gaúchos em nove anos entre 1940 e 1948 com um time onde pelo menos a metade dos jogadores era negra. “Tesourinha, negro, chegou ao Inter em 39 e foi o principal expoente do lendário Rolo Compressor, a ponto de chegar à seleção brasileira mesmo em tempos de predomínio paulista e carioca”, conta Caramês. Tesourinha também jogou pelo Grêmio, em 1952, após passagem pelo Vasco.

Antunes, o segundo agachado da esquerda para a direita, com o time do Grêmio em 1915.
Antunes, o segundo agachado da esquerda para a direita, com o time do Grêmio em 1915.REPRODUÇÃO

O sucesso do Internacional na década de 40 rendeu provocações racistas por parte dos rivais, conforme conta o pesquisador do Museu: “Muitos relatos dão conta que chamavam o Inter de ‘macaco’ e ‘clube dos negrinhos’ já naquela época”. Anos depois, a torcida Geral do Grêmio popularizou o bordão “chora macaco imundo” para se referir ao rival, fato que se tornou passível de punição institucional do clube somente em 2019. “Os adversários também associavam as vitórias do Inter à ‘magia negra’, o que fez que o clube adotasse a figura do Saci-perêrê, menino negro que prega peças, como mascote”, continua Caramês. Registros apontam que o personagem do folclore brasileiro era usado em referência ao Internacional desde 1960, mas só foi oficializado como único mascote negro entre os times da série A do campeonato brasileiro em 2016.

“Apesar disso, a disputa dessa temática não auxilia na superação do tema dentro da sociedade”, ressalta o pesquisador. “Não devemos resolver nossas mazelas a nível clubístico, mas a nível de sociedade”, completa. Grêmio e Inter levaram uma faixa antirracista para o clássico, realizado em 3 de novembro, e se manifestaram nas redes sociais no último dia 20, mas realizaram poucas ações de combate ao preconceito para além do mês da consciência negra. “Os jogadores negros foram fundamentais para que estes clubes se tornassem o que são, embora as instituições permaneçam negando essa importância ao não se posicionarem contra”, finaliza José Antônio dos Santos.

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