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“Satanás, fora da Bolívia!”: como agem os grupos que lideraram os protestos contra Evo Morales

Os comitês cívicos, grupos de bairro que lideraram os protestos contra Morales, prosperam em um clima de exaltação religiosa. Seu líder é o ultracatólico Luis Fernando Camacho

Luis Fernando Camacho saúda seus seguidores no dia 10, em La Paz.
Luis Fernando Camacho saúda seus seguidores no dia 10, em La Paz.AIZAR RALDES (AFP)
Francesco Manetto
Santa Cruz de la Sierra -

Milhares de pessoas caminham para a praça del Cristo Redentor, em Santa Cruz de la Sierra, cobertas com a bandeira boliviana. Todos aguardam Luis Fernando Camacho, líder do setor mais radical dos protestos contra o Governo de Evo Morales. É quase meia-noite da última terça-feira e acaba ser suspensa a greve que bloqueou a segunda cidade do país, bastião da oposição, durante 21 dias. Horas antes, a senadora de direita Jeanine Áñez havia se declarado presidenta sem o apoio da maioria do Parlamento, ainda controlado pelo partido do ex-presidente, o Movimento ao Socialismo (MAS). Para os adversários do líder indígena, que renunciou e está asilado no México, já estava tudo feito.

Ao lado da estátua do Cristo, desfilam pelo palco músicos, pregadores e porta-vozes dos chamados comitês cívicos. Tratam-se das organizações que reúnem grêmios e associações de moradores, especialmente dos departamentos de Santa Cruz e Potosí, que alardeiam ter derrubado Morales, que governou por quase 14 anos. A bandeira que envolve o atril transmite uma ideia do clima da celebração: “Jesus governa a Bolívia”. De repente, do palanque, uma voz improvisa um exorcismo. “Agora amarramos Satanás... E amarramos todos os demônios da bruxaria e os enviamos ao abismo nesta hora. Estabelecemos um novo tempo nos céus da Bolívia. Satanás, fora da Bolívia! Agora!”.

Camacho, presidente do Comitê Pró Santa Cruz, chegou pouco depois acompanhado por Marco Pumari, líder de uma associação equivalente em Potosí. Atrás deles estão grupos de moradores e representantes locais de associações profissionais que paralisaram as ruas na tentativa de demonstrar sua força. Em Santa Cruz, boa parte da população prestou atenção neles. A cidade, que desde as eleições de 20 de outubro foi palco de violentos confrontos entre apoiadores e detratores de Morales, tinha nos últimos dias um aspecto fantasmagórico. Em cada rotatória, em cada cruzamento, um posto de controle inspecionava os transeuntes. Quase sempre com muita educação.

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Na entrada da ponte Urubó, sobre o rio Piraí, uma dezena de pessoas espera sob uma pequena tenda. Ao lado delas, um grande cartaz com as fotografias de Morales, seu número dois, o ex-vice-presidente Álvaro García Linera, ministros e líderes do MAS. A cada hora, abrem a passagem por dez minutos. “É para que as pessoas saibam que uma greve é uma greve”, diz Juan Manuel D’Arruda, de 40 anos, cozinheiro. Seu objetivo é que a população tome consciência. Na conversa intervêm Yhomar De Sanctis, de 37 anos, executiva de vendas, Vittorio Aloisio, empresário de 46 e outros moradores. “Este é um movimento pacífico, com famílias, estamos aqui, sem trabalhar, sem receber nem nada”, afirmam.

São o espelho das classes médias e abastadas e suas posições contra o Governo derrubado estão muito radicalizadas. Falam de um “plano maquiavélico”, consideram muito branda ou diplomática a posição da Organização dos Estados Americanos (OEA), que realizou uma auditoria do processo eleitoral e recomendou a realização de novas eleições. “Aqui não é o povo contra o povo, é o povo contra os masistas”, resumem para descrever a crise pela qual a Bolívia está passando em referência aos militantes do MAS. Acreditam que a estratégia de Morales é esperar o momento certo no México e voltar ao país. “Tudo o que eles estão fazendo é uma novela mexicana”, diz uma dos presentes. Também rejeitam que as críticas se centrem em Camacho, representante da elite, ultradireitista e ultracatólico. “Pumari é indígena e mineiro, mas não é nomeado porque do contrário cai o discurso deles sobre o racismo”, afirmam.

Como no piquete da ponte do Urubó, na sede do Comitê Pró Santa Cruz, fundado há 59 anos, os interlocutores são muito amáveis. Enquanto Camacho, seu líder, continuava em La Paz, onde entrou no Palácio do Governo para depositar uma Bíblia, o responsável pela instituição é o vice-presidente, o médico Rómulo Calvo. “Estamos acostumados a viver com medo, primeiro das ações que pudessem ser tomadas contra ele, agora de que volte”, diz ele.

A fé como arma

Alegam ser um movimento transversal, que vai além dos partidos, que prega a inclusão de todos. Mas seu discurso e o de seus colaboradores, que segue o roteiro das comparações com Cuba e Venezuela, parece irreconciliável com o projeto do MAS, que foi excluído do Gabinete de transição nomeado por Jeanine Áñez. Mais que adversários políticos, eles parecem se considerar seus inimigos. E por que Camacho foi ao palácio com uma Bíblia em pleno século 21? Mario Aguilera, outro dirigente do comitê, responde: “De que outra forma você pode enfrentar desarmado, consciente e pacificamente um Estado de Governo ditatorial? Somente com fé, a mais bela arma do ser humano”.

Não se conhecem com exatidão os planos de Camacho. No momento, seu advogado, Jerjes Justiniano, é o ministro interino da Presidência. Na terça-feira foi aclamado ao voltar de La Paz por milhares de seguidores. “Já somos livres, juntos nós conseguimos”, enfatizou. Também acenou para os indígenas exibindo sua bandeira, a wiphala. Morales lhes deu protagonismo, mas nos últimos anos algumas comunidades não esconderam seu mal-estar com o Governo e acabaram participando dos protestos. No entanto, Camacho voltou, entre aplausos, ao seu relato: “Esta não é a Cuba dos irmãos Castro ou a Venezuela de Chávez e Maduro”.

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