_
_
_
_

O povoado que esconde o segredo contra o Alzheimer

Como vivem em Yarumal, uma das populações da Colômbia com milhares de portadores do gene da demência precoce

Catalina Oquendo
Leidy (esquerda) é gerontologista e filha de Yamile (centro), que sofre de Alzheimer aos 46 anos.
Leidy (esquerda) é gerontologista e filha de Yamile (centro), que sofre de Alzheimer aos 46 anos.David Estrada Larrañeta

Os habitantes de Yarumal acreditaram, durante anos, que era uma bruxaria. Os doentes pensavam que haviam recebido uma maldição que lhes condenava a esquecer e, ao morrer, os sacerdotes registravam a causa de sua morte como “amolecimento do cérebro”. Por essas regiões da Antioquia, no noroeste da Colômbia, ninguém sabia que era o Alzheimer. O que milhares de habitantes do povoado compartilhavam, essa perda de memória quando completavam anos, a falta de mobilidade e a deterioração mental, era chamada de “uma doença colocada”. Para eles, era um castigo.

Há somente trinta anos o trabalho dos pesquisadores colombianos Francisco Lopera e Lucía Madrigal, do Grupo de Neurociências da Universidade de Antioquia (GNA), abriu uma porta para entender o que estava acontecendo nos povoados de Yarumal, Ituango, Angostura e Belmira. Lá, milhares de pessoas de 25 famílias compartilhavam algo mais do que um simples parentesco: tinham uma mutação no gene da presenilina 1, de modo que desenvolviam Alzheimer precoce. Com o tempo, foi chamada de “mutação paisa” (da região de Antioquia).

Lucía Madrigal retira uma folha de uma maleta, a desdobra e a estende até onde os braços permitem. É um enorme documento que fica cada vez maior: a genealogia de algumas das 6.000 pessoas de 25 famílias analisadas, das quais 1.200 são portadoras da mutação que a doença produz. Um trabalho que ela e Lopera recompilaram desde 1984 e que foi o início de uma descoberta recente que abre o caminho a novos tratamentos da demência precoce.

Mais informações
A mulher resistente ao Alzheimer
Seis hábitos para reduzir o risco de Alzheimer
Canções de ninar contra o Alzheimer

Madrigal, doutora em psicologia clínica, fala emocionada. Investigou os antepassados dessas famílias até o ano de 1740, esquadrinhou registros de nascimentos em igrejas e atestados de óbito identificando os doentes, foi à Espanha procurar os ancestrais de onde chegou essa forma de Alzheimer precoce, analisou milhares de pessoas para saber se são portadoras da mutação paisa. Também se encarrega do trabalho social com os pacientes que integram o estudo clínico do Grupo de Neurociências.

A história começou quando, sendo residente em neurologia, Lopera atendeu uma paciente de 47 anos que havia perdido a memória. Ele se perguntou por que aconteceu a alguém tão jovem e, investigando, descobriu que algo semelhante ocorreu ao pai, avô e tios da paciente. “Quando começamos, íamos pelas trilhas a cavalo e a pé procurando essas famílias partindo dessa paciente”, diz Madrigal.

Com o tempo e explicações simples às famílias, os pesquisadores conseguiram mudar o mito e o estigma. Lopera costuma dizer a eles que o Alzheimer é uma doença degenerativa do cérebro produzida por depósitos de “proteínas lixo” que intoxicam os neurônios e os destroem. E Madrigal lhes recorda que com eles “se abriu uma caixa de Pandora, com uma esperança às gerações que estão por vir”. A demência afeta 50 milhões de pessoas mundialmente, a maioria pelo Alzheimer, e a cada três segundos um novo caso é diagnosticado, de acordo com dados da OMS, que afirma que em 2050 o número pode triplicar até chegar a 152 milhões de pessoas afetadas.

Lucía e Claudia Madrigal seguram um fragmento da genealogia das milhares de famílias portadoras da 'mutação paisa'
Lucía e Claudia Madrigal seguram um fragmento da genealogia das milhares de famílias portadoras da 'mutação paisa'D. E. L.

Uma dessas milhares de pessoas que foi ao GNA era a primeira dessas famílias portadoras do gene que não desenvolveu danos cognitivos até completar 70 anos, três décadas depois do esperado a uma pessoa com a mutação do gene paisa. Ou seja, graças a um trabalho conjunto entre pesquisadores nos Estados Unidos e na Colômbia, encontraram uma mulher resistente ao Alzheimer, o que pode ter implicações no tratamento e na prevenção da doença, um estudo publicado recentemente pela revista Nature Medicine.

Isolamento genético

Para chegar a Yarumal é preciso atravessar fazendas de produção de leite e enormes montanhas que permitem entender por que nessa região a mutação ocorreu em tantas pessoas. “Essa área foi uma ilha genética”, diz David Aguillón, médico e pesquisador do GNA.

Há também uma relação com a consanguinidade. Em outras épocas, essas famílias camponesas não costumavam ir à cidade e se casavam entre familiares. Hoje, a população entende que é uma doença hereditária, ainda que isso não evite o medo de muitos em se casar com alguém relacionado ao tronco da mutação e não afugente o temor dos mais jovens das famílias portadoras em ser algum dos possíveis afetados pela doença.

A pesquisadora Lucía Madrigal cumprimenta Yamile, que sofre de Alzheimer desde os 41 anos.
A pesquisadora Lucía Madrigal cumprimenta Yamile, que sofre de Alzheimer desde os 41 anos.D. E. L.

O drama de Yamile

No alto de um morro, em uma casa simples, com flores, vive uma mulher que carrega consigo essa antiga maldição que agora se sabe que é Alzheimer precoce. Yamile [a família prefere não fornecer o sobrenome] já não fala, mas ainda sorri. Tem 46 anos e não perdeu totalmente a mobilidade, mas não tem o controle de seus esfíncteres e precisa usar fraldas. Nessa tarde de novembro está alegre e não agressiva como nos últimos dias, como diz aliviada Leidy, uma de suas filhas e seu principal suporte, sua guia.

Yamile tinha 41 anos quando apareceram os primeiros sintomas da doença e, desde então, toda a família sofre com a deterioração. “Começou com esquecimentos, dividia as refeições e lavava os pratos várias vezes, perguntava as mesmas coisas”, diz Paola, a mais nova, que era uma criança quando sua mãe teve os primeiros sintomas. Yamile, lembra Hildebrando, o esposo, era uma ativa dona de casa, uma mulher exigente e impecável, que adorava dançar. “Às vezes colocamos música e ela se anima”, diz o homem e a beija. Ela devolve o mimo com carinho, mas imediatamente perde esse instante de lucidez: caminha de um lado para o outro, não fica quieta mais do que alguns minutos enquanto todos prestam atenção nela como se fosse um bebê que escapa e pode cair.

Yamile não é a primeira de sua família a ficar doente. Duas irmãs mulheres e um homem também têm Alzheimer, e há um em que ainda existem dúvidas. Ao olhar mais para trás em sua árvore genealógica, sua mãe e dois tios, todos falecidos, também a tiveram. Graças à genealogia feita no GNA, também se sabe que em sua família a doença é mais antiga e o avô de Yamile, assim como três tios-avôs, a tiveram. No total, 10 pessoas de sua família sofreram a doença, e em alguns outros existem dúvidas porque ainda não apresentaram os sintomas e porque não se tem a informação.

“Eu às vezes acho que também a terei”, confessa Kelly, uma das filhas de Yamile. Por isso muitos deles também se perguntam se deveriam ter filhos. De qualquer forma, não se sabe com certeza quem irá sofrê-la e, como explicam os pesquisadores, há pessoas saudáveis dentro de famílias portadoras da mutação. Das 6.000 pessoas, 1.200 têm a mutação e há registros de 200 afetadas.

O Alzheimer é uma doença cara e causa enorme prejuízo nessas famílias camponesas. Muitos, como Leidy e seu esposo Andrewis, deixam seus trabalhos para se transformar em cuidadores em tempo integral da pessoa doente; outros, como Yeison, o outro filho da paciente, trabalham duro para conseguir os medicamentos e minimizar os estragos de um sofrimento ainda sem cura. Tudo isso sem contar o enorme desgaste emocional.

Por isso, muitos vão religiosamente a cada 15 dia ao Hospital de Yarumal para se submeter a um teste clínico e verificar se o Crenezumab, um medicamento da empresa farmacêutica Genentech, da Roche, pode prevenir o Alzheimer ou atrasar o início da doença. “Vêm e me dizem: ‘Eu faço o que for possível para encontrar uma solução porque é muito duro o que temos vivido”, diz a enfermeira Claudia Cristina Madrigal Mesa, que aplica o medicamento a membros das famílias que têm a mutação e aos que não a possuem. Os resultados do estudo serão conhecidos após 2022.

Yamile sofre de Alzheimer precoce. Na foto, é ajudada por seu esposo, Hildebrando.
Yamile sofre de Alzheimer precoce. Na foto, é ajudada por seu esposo, Hildebrando.D. E. L.

No mundo foram estudados aproximadamente 800 medicamentos contra o Alzheimer, sem nenhum resultado. Lopera acha que foram utilizados no momento inadequado, na demência, e explica que seu trabalho é sobre a prevenção, especialmente com os mais jovens das famílias. “Descobrimos que o amiloide começa a ser depositado aos 28 anos de idade ainda que os primeiros sintomas são observados aos 44. A Colômbia tem a oportunidade de oferecer o primeiro estudo de prevenção primária à doença de Alzheimer no mundo, porque encontramos 400 membros dessa famílias menores de 28 anos que são portadores da mutação paisa condenados a sofrer a doença de Alzheimer nos próximos anos”, disse o diretor do GNA.

379 cérebros

O trabalho continuado do grupo também permitiu a criação de um neurobanco, no qual hoje pesquisam os 379 cérebros de pessoas que tiveram a doença. “Antes havia muito tabu, mas as famílias agora estão conscientes e nos doam pensando nas gerações futuras”, diz Aguillón enquanto mostra um cérebro com Alzheimer, menor do que um saudável pela perda neuronal.

O GNA começou com duas pessoas e hoje tem cem pesquisadores. A chave de seu sucesso é que muitos de seus integrantes foram estudar em universidades no exterior, mas continuaram conectados com o Alzheimer hereditário de Antioquia. Também foram fundamentais as alianças como as que têm com o neurologista Keneth Kosik, da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara e com cientistas de Harvard. Assim também ocorre a pesquisa da mulher resistente ao Alzheimer, que viajou aos Estados Unidos para o estudo. Apesar dos pesquisadores encontrarem em seu cérebro altas quantidades da proteína beta-amiloide, primeiro marcador do Alzheimer, e baixas medições da proteína tau, seus neurônios não se destruíram trinta anos atrás como era o esperado. A razão – explicam no estudo – é que a mulher tem duas cópias de APOE3 Christchurch, uma variante do gene que parece protegê-la da doença.

Os pesquisadores sabem que ainda falta muito para que essa descoberta tenha impacto concreto na vida de famílias como a de Yamile, mas sem dúvida acreditam que com essa pesquisa abriram a caixa de Pandora que no futuro poderá ajudar doentes de Alzheimer de todo o mundo.

Por enquanto, como há 30 anos, continuam ampliando a genealogia e identificando famílias com a mutação paisa, uma busca que os levou até mesmo a outros países. Já não o fazem a cavalo. Agora, nas ruas de Medellín são vistos painéis publicitários com uma foto coberta com uma tarja preta e que dizem:

“Esse é seu pai. Seu nome é Carlos. O Alzheimer familiar se manifesta em adultos jovens e o risco de herdá-lo é alto. Ligue para 2196664”.

O pesquisador David Aguillón mostra os cérebros do neurobanco do Grupo de Neurociências da Universidade de Antioquia.
O pesquisador David Aguillón mostra os cérebros do neurobanco do Grupo de Neurociências da Universidade de Antioquia.D. E. L.

Mais informações

Arquivado Em

_
_