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Mikhail Gorbachov: “Que o futuro não lhes escape”

Primeiro e único presidente da URSS defende a necessidade de consolidar a sociedade e manter a luta pelo desarmamento nuclear

Pilar Bonet
O ex-presidente soviético durante visita a um antigo posto fronteiriço do muro de Berlim, em 2014.
O ex-presidente soviético durante visita a um antigo posto fronteiriço do muro de Berlim, em 2014.Hannibal Hanschke (REUTERS)

O ex-secretário geral do Partido Comunista da URSS, país que desapareceu em 1991, recebe o EL PAÍS na fundação batizada com seu nome em Moscou. Quando se sente bem, Gorbachov vai dois ou três dias por semana ao trabalho. Hoje, uma terça-feira do final de outubro, Mikhail Sergueievich chegou às 11h, e já são mais de 16h. Durante a jornada, é acompanhado por seus fiéis colaboradores Pavel Palajchenko, Karen Karaguesian, Olga Zdravomislova. Com esta pequena equipe se reuniu para programar atividades – entrevistas, artigos, visitas – por ocasião das efemérides vindouras.

A fundação é um lugar tranquilo, onde a atividade diminuiu notavelmente nos últimos anos, em parte porque teve que restringir os eventos com patrocínio internacional para evitar ser rotulada como “agente estrangeiro”, em virtude da legislação promulgada durante a presidência de Vladimir Putin. A fundação não promoverá neste ano nenhum seminário ou conferência especial sobre a queda do muro do Berlim, o símbolo da divisão entre o Oriente e Ocidente, cuja destruição, há exatos 30 anos, foi possível graças ao “novo pensamento político” de Gorbachov e a sua visão de uma Casa Comum Europeia do Atlântico a Vladivostok.

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O ex-presidente da URSS tampouco irá a eventos internacionais, como ocorria em outras efemérides. Seus médicos não lhe recomendam viagens, e já não estão neste mundo aqueles veteranos com quem compartilhava lembranças, como o ex-chanceler alemão Helmut Kohl (1930-2017) ou seu ministro de Relações Exteriores, Hans Dietrich Genscher (1927-2016).

Por outro lado, a fundação realizará no mês que vem um seminário sobre a cúpula que Gorbachov e o então presidente dos EUA, George H. W. Bush (também já falecido) em 2 e 3 de dezembro de 1989 em Malta. Ali, em frente ao porto de La Valeta, a bordo do navio de cruzeiro Maksim Gorki, sacudido por um mar encrespado, os dois dirigentes conversaram sobre as consequências da então recente queda do muro. Àquela altura Bush já havia sido suprido com um estoque de fragmentos daquela construção, que distribuía aqui e acolá. “Salientamos a cúpula de Malta porque aquele encontro entre os presidentes da URSS e dos EUA marcou o final real da Guerra Fria, e além disso era soviético- americano. Do ponto de vista histórico, Malta é mais importante que a queda do muro, porque se este acontecimento marca uma etapa para o fim da Guerra Fria, Malta marca seu final”, diz Zdravomislova. A intenção é sublinhar a “desmilitarização” do pensamento internacional naquele período, resume.

Gorbachov acaba de publicar um livro intitulado O Que Está em Jogo – O Futuro do Mundo Global, baseado na sua experiência como estadista. Mikhail Sergueievich me autografa um de seus livros e me chama a atenção para uma foto sua. Digo a ele que prefiro a imagem na capa da Diletant, uma revista de divulgação histórica. É um desenho de um homem atraente, com um elegante chapéu um pouco inclinado sobre a testa.

Gorbachov, que é viúvo, vive sozinho. Sua filha, suas duas netas e seus dois bisnetos moram no exterior. O ex-presidente usa uma camisa de flanela xadrez cinza e azul. O caráter caseiro do traje faz que Elena Martinova, a secretária, ponha reparos maternais a que se faça uma foto. Em um discreto segundo plano, junto à poltrona onde Gorbachov está sentado, há um andador. “Desculpe que não me levante”, diz ao princípio e ao final do nosso encontro. “Não caminho, arrasto-me”, acrescenta, aludindo a seus problemas de mobilidade. Sua saúde tem altos e baixos. Nos últimos tempos perdeu 20 quilos e se encontra melhor, conforme diz, porque sua dieta está mais rigorosa.

E como consolidar a sociedade?, prossigo. “Não se deixe levar pelos velhos esquemas. Seja jovem”, diz, deixando a incógnita no ar. O que conteúdo prático situa no conceito de juventude?, pergunto. Gorbachov não responde. Conclama a interlocutora a buscar as respostas por si mesma, e se põe então a fazer perguntas.

“Qual a sua opinião sobre a Rússia?”, dispara à queima-roupa. “Contraditória”. Há “uma Rússia boa, e outra menos boa”, digo-lhe. “A contradição contém essas duas coisas, o que tem de bom e aquilo do que deve se livrar”, comenta Gorbachov, filosoficamente.

“Em sua época, caíam os tabus e se abriam todas as portas…”, prossigo. “E agora tudo se fecha”, sentencia Gorbachov, sem esperar o final da frase. “Nós as abriremos de novo, as abriremos. Não dê atenção a isso”, salienta. “Diga-me um país onde esteja tudo bem e não seja preciso mudar nada.”

Na época da perestroika havia esperança de que as coisas melhorassem, iniciava-se um processo de desarmamento, ampliava-se a liberdade de expressão. Agora tudo parece ir em sentido contrário, voltam a ser impostos tabus e se liquidam os tratados de desarmamento assinados graças ao “novo pensamento”, insisto. O que Mikhail Sergueievich diria aos jovens? “Eu diria que o futuro é deles e que devem fazer o possível para que não lhes escape. Mas eles já sabem”. “Não, não e não”, afirma Mikhail Sergueievich em profundo desacordo. Para ele, o mundo não ruma para o suicídio ou a destruição, embora de novo no ar “se fareje o autoritarismo”.

Na fundação de Gorbachov se conservam vários fragmentos do muro do Berlim. “Houve uma época em que todos tiveram a ideia de dar partes do muro de presente a Gorbachov”, nos disse a chefe do arquivo alguns meses atrás, enquanto mostrava um pedaço de muro pintado com esmalte brilhante e guardado em uma vitrine, como uma escultura moderna. Outro dos fragmentos do muro, enorme e pesado, jazia como uma laje sobre pastas de papéis, em uma estante. “Temos três pedaços de muro inventariados”, diz Zdravomislova após solicitar a informação atualizada no arquivo, onde são guardados também jornais amarelados da glasnost, a política de transparência informativa.

Gorbachov tem 88 anos, mas já convida para o seu 90º aniversário. “Você virá?”, pergunta ele. “E aos 100 também”, digo-lhe, e comento que me fizeram refletir as canções ucranianas que ele cantou quando fez 85 anos. São canções que aprendeu em sua infância dos camponeses de seu povoado de Privólnoye, na província de Stavropol, no norte do Cáucaso. Gorbachov herdou o gosto pela música da sua mãe, de origem ucraniana. Essa fusão entre o russo e o ucraniano na identidade forjada em sua infância é chave para entender não só sua vida, mas também sua política, seu desejo de conservar unida a URSS, esse país que escapou das suas mãos. Também é crucial para entender suas opiniões sobre os conflitos atuais entre os dois países vizinhos. Gorbachov faz minha vontade e me recita agora uns versos ucranianos, e continua depois com uns versos em russo.

Entre as atividades em sua agenda, Gorbachov manteve em 5 de novembro uma reunião com o ex-presidente polonês Lech Walesa, que foi acompanhado do político alemão Christian Wulf e do embaixador da República Federal da Alemanha com uma carta de agradecimento e reconhecimento do presidente alemão, Franz Walter Steinmeier. Segundo a informação publicada no site da fundação, Gorbachov salientou especialmente “a necessidade de continuar a luta pelo desarmamento nuclear”. “Enquanto tiver força falarei disto em todas as partes”, disse o pai da perestroika.

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