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Coluna
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Todos nós fomos, alguma vez, o monstro de alguém

Era um homem. Ao qual severa, grave, meticulosamente fiz em pedaços

Leila Guerriero
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Do que me lembro? De cada parte. O sulco que se desenhava junto à boca dele ao acender um cigarro; o jeito como franzia a testa quando ria com pavor, como se estivesse escandalizado por rir tanto. A esplêndida raiz do pescoço, a clavícula como uma cruz pagã. Tinha ombros inexplicáveis, os ombros de alguém que sofre muito, mas que quer continuar vivo. Eu era muito jovem e ele também e, às vezes, antes de se aproximar, olhava para mim como se estivesse prestes a cometer um ato sagrado ou um sacrilégio. Tinha uma dor clássica no rosto, uma elegância drástica. Eu gostava, como tantos gostam, que fosse um homem ferido e visse em mim uma possibilidade de redenção (que eu não lhe daria). Estava roto, como eu estava, mas sua catástrofe era serena e eu, por outro lado, era um diabo emergido de uma pampa queimada, sem lugar ao qual voltar. No começo, quis ir embora, mas o retive de maneira simples, dizendo-lhe: “Se você for embora, eu não me importo”. Até que ele quis ficar irreversivelmente. Eu me sentia curiosa e cruel, mas também gentil e emocionada. Havia algo nele. Uma espécie de calma dramática, contagiosa. Um dia chegou ao meu trabalho com um buquê de flores. Eu não esperava isso. Sorrindo, tímido e sem artimanhas, me disse coisas. Todas as coisas que todos querem ouvir alguma vez. Reagi como uma hiena assustada, como um jato de luz negra, muriática. Lembro que no antebraço tinha um músculo magnífico. Quando se retesava fazia pensar que tudo nele era feito de um material fresco, nobre e tenaz: que podia levar a carga. Era um homem. Ao qual severa, grave, meticulosamente fiz em pedaços. Não vim aqui para pedir desculpas, mas para dizer que atirem a primeira pedra. Todos nós já fomos, alguma vez, o monstro de alguém.

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