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Exumação de Franco põe fim ao último grande símbolo da ditadura

Quatro décadas depois, Espanha salda a dívida pendente no monumento “à Cruzada", com o qual o ditador queria "desafiar o tempo e o esquecimento”

Natalia Junquera

Oitenta anos depois do final da Guerra Civil espanhola, o Vale dos Caídos deixou de ser nesta quinta-feira um monumento “à Cruzada”, um mausoléu de Estado para um ditador e uma anomalia internacional apontada por relatores da ONU que visitaram o local.  O traslado dos restos de Francisco Franco, avalizado pelos três poderes do Estado, separa o verdugo de suas vítimas no monumento com o qual o ditador quis “desafiar o tempo e o esquecimento”, segundo o decreto em que anunciou o início das obras. O desafio durou, exatamente, 43 anos, 11 meses e dois dias; os que transcorreram desde que a ditadura se despediu dele com honras até esta quinta-feira, quando a democracia enterra seus restos em uma tumba muito mais discreta, mas também paga pelo Estado.

Familiares de Francisco Franco carregam o caixão do ditador após a exumação nesta quinta-feira.
Familiares de Francisco Franco carregam o caixão do ditador após a exumação nesta quinta-feira. POOL (REUTERS)
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A exumação começou às 10h30 de uma manhã gelada (seis graus) em Cuelgamuros, o lugar que Franco escolheu em 1940 para erguer seu mausoléu. O ditador quis um monumento a si mesmo que imortalizasse sua vitória durante a Guerra Civil. Foi com esse propósito que Franco fez erguer uma enorme cruz de 150 metros e um mausoléu que acolhe mais de 33.800 corpos, muitos deles, extraídos de fossas comuns, sem conhecimento da família, para repousar até hoje ao lado do carrasco. Foram entre 200.000 e 400.000 mortos pela repressão franquista. Por isso, a retirada de seus restos mortais do espaço em que tentou se imortalizar tem um valor simbólico incalculável para a Espanha.

O sepultamento, em 23 de novembro de 1975, teve toda a pompa e honras imagináveis, na presença do rei Juan Carlos. Nesta quinta-feira, tudo foi muito diferente, como diferente é a Espanha. “Sobriedade, discrição e dignidade”, repete o Executivo que realizou o traslado dos restos do ditador – um Governo interino, depois da 13ª legislatura da democracia.

O ditador faleceu apenas dois meses depois de ter assinado cinco condenações à morte, pena que seria abolida na Constituição de 1978 (salvo “para tempos de guerra”) e por lei em 1995. Deixou um país sem partidos políticos, e hoje há 13 com representação parlamentar, incluído um, o Vox, que agora fala de “profanação”, que argumenta que condenar o franquismo “não faz nenhum sentido” e que 40 anos [de ditadura] “não podem ser jogados no lixo”. E o processo para aprovar e finalmente executar a exumação e traslado de Franco – de um monumento para um túmulo; de um lugar onde compartilha leito com suas vítimas a outro onde jazerá ao lado da esposa –, foi avalizado separadamente pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, outrora confundidos no regime ditatorial dos conselhos sumaríssimos.

O caminho, entretanto, não foi fácil, como evidenciam estas quatro décadas transcorridas desde o enterro, e os 16 meses que separam a notícia exclusiva deste jornal antecipando o plano para exumar o ditador, em 17 de junho de 2018, até o momento em que os operários de uma funerária levantaram uma laje de 1.500 quilos que parecia irremovível.

Foi o Governo de Adolfo Suárez (1976-81) que iniciou as medidas que atualmente conhecemos como memória histórica, ativando reparações ao lado dos vencidos na Guerra Civil (1936-39), o dos que sofreram represálias (prisão, expurgo, ruína) na ditadura posterior. A tarefa continuou nos Executivos seguintes, mas o Vale dos Caídos ficava sempre de fora, “desafiando o tempo e o esquecimento”, como tinha determinado Franco no decreto de 1940.

Ramón Jáuregui, ministro da Presidência sob José Luis Rodríguez Zapatero, descreve esta exumação como “a grande dívida pendente”. Admite a enorme “frustração” que foi entregar à vice-primeira-ministra Soraya Sáenz de Santamaría em dezembro de 2011, sabendo que o engavetariam, o relatório do comitê de especialistas que ele tinha formado e que recomendava a retirada do corpo de Franco. “Nós o havíamos concluído antes das eleições, mas consideramos que só seria oportuno apresentá-lo depois. Quando perdemos, fui o encarregado de passar ao novo Governo todos os nossos documentos, entre eles o relatório do Vale dos Caídos. Recomendei que o executassem eles, que recuperássemos esse consenso do pacto reconciliatório sob Suárez, mas não fizeram nada.” Hoje, Jáuregui celebra que finalmente se cumpram as recomendações daqueles especialistas, mas recorda que “a exumação de Franco é uma condição necessária, mas não suficiente para a ressignificação do Vale”.

A operação consumiu quase 44 anos e um máximo de 63.000 euros (cerca de 283.000 reais), dos quais quase 40.000 correspondem à restauração do panteão do cemitério de Mingorrubio, no bairro madrilenho de El Pardo, onde Franco será enterrado com a sua esposa, Carmen Polo. O Governo ofereceu à família do ditador adquirir o espaço pelo preço taxado por metro quadrado, mas esta recusou, segundo fontes governamentais. A manutenção do panteão, assim como as medidas de segurança necessárias (foram colocadas novas grades, uma porta blindada e detectores de movimento) ficará a cargo do Executivo, que terá uma das três chaves do panteão, na Delegação do Governo (outra ficará no Patrimônio do Estado, e outra no próprio cemitério). “Não é a solução ideal, mas é a possível. O prioritário era que o Vale dos Caídos deixasse de ser um monumento em que as vítimas tivessem que compartilhar espaço com seu verdugo”, afirma Jáuregui.

Em visita à sede nova-iorquina das Nações Unidas – um organismo que recomendou várias vezes à Espanha intervir no Vale dos Caídos –, o presidente interino do Governo espanhol, Pedro Sánchez, insistiu na “imoralidade” de que os restos de Franco tivessem permanecido todo este tempo junto a suas vítimas. “Fechamos um capítulo obscuro de nossa história”, declarou, depois de obter o aval do Tribunal Supremo na longa disputa com a família do ditador. “Nenhum inimigo da democracia merece um lugar de culto. É uma grande vitória da democracia espanhola”, proclamou.

Fausto Canales, filho e sobrinho de dois republicanos enterrados no mausoléu sem o consentimento familiar, há anos luta para recuperar os restos. “Alegra-me muito que Franco saia do Vale, acredito que deveria ter saído muito antes. Mas agora têm que nos devolver os restos. É uma questão de humanidade. Todo mundo quer ter seus mortos em um lugar digno, com seus nomes e sobrenomes. Que não compartilhem espaço com o ditador é um alívio temporário, mas o Estado continua tendo essa dívida pendente conosco.”

Há apenas algumas semanas, depois da sentença do Supremo, o historiador Santos Juliá, falecido nesta quarta-feira, celebrava o traslado dos restos de Franco. “Ele está lá de maneira espúria, não é um caído [da Guerra Civil] e deve sair, e os familiares das vítimas, recuperar os restos, se for possível. Mas o melhor destino desse monumento é sua ruína, deixar que o tempo cumpra sua função e que não se volte a investir um só euro dos Orçamentos do Estado em sua manutenção”. A democracia decidirá a partir de agora.

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