A tática do Museu do Prado para salvar suas obras da Guerra Civil copiada pelo mundo
Depois do início da Segunda Guerra Mundial, as joias da instituição cruzaram a França no último comboio civil que atravessou as vias férreas do país
Depois do início da Segunda Guerra Mundial, as joias do Museu do Prado cruzaram a França no último comboio civil que atravessou as vias férreas do país. Dias depois de As Meninas chegarem sãs e salvas a Madri procedentes de Genebra, a Ronda da Noite deixou o Rijksmuseum, enrolada num cilindro e pela porta do jardim. Outras 30.000 obras de arte se deslocaram naquele setembro de 1939 do museu de Amsterdã em direção a vários bunkers da costa holandesa. Um ano depois, em maio de 1940, quando Hitler invadiu os Países Baixos, a obra-prima de Rembrandt voltou a driblar o front e foi transferido para a mina de Saint Pietersberg, em Maastricht. O Louvre e demais museus europeus também levaram seus tesouros artísticos para longe da luta, a fim de evitar sua destruição.
O mundo tinha aprendido a lição que a República espanhola pôs em prática durante a Guerra Civil (1936-1939), quando retirou (a partir de novembro de 1936) milhares de joias do patrimônio espanhol, primeiro para Valência, e de lá para a Catalunha, fugindo das bombas franquistas. “A decisão espanhola entrou nos manuais de museologia de todo o mundo. Entenderam que, em caso de guerra, era melhor evacuar. Até então, a recomendação era descer as obras para os porões”, explica Miguel Cabañas, pesquisador e chefe do Departamento de História da Arte e Patrimônio do CSIC (Conselho Superior de Pesquisas Científicas da Espanha). O mundo viu como a umidade, as bombas e o contrabando exigiam deslocar rapidamente o acervo para longe das trincheiras. As dramáticas imagens do massacre cultural cometido pelo Estado Islâmico desde 2014, na Síria, mostram as consequências de não fazê-lo.
O que chama a atenção de Cabañas naquela operação é “o interesse do povo espanhol em salvar o patrimônio”. Foi fruto da vocação conservacionista da chamada Geração de 14, formada na Instituição Livre de Ensino. Aquele interesse tem um nome sem reconhecimento: Ricardo de Orueta (1868-1939). Pioneiro ao entender a riqueza artística como tesouro cultural de uma nação, foi o flagelo de rapinadores como William Randolph Hearst. Renomado diretor-geral de Belas Artes da República, legislou, em 1931, a proteção do patrimônio com uma lei que reformou em 1933. A atual Lei de Patrimônio Histórico da Espanha, de 1985, é herdeira daquela.
A decisão da República espanhola entrou para os manuais de museologia do mundo todo
Orueta reagiu de maneira imediata perante a queima de igrejas e obras de arte dos primeiros dias da República. Implantou a ideia de que o Estado é o fiador da proteção do legado histórico. “Houve elementos que fomentaram os desmandos para acelerar uma reforma religiosa. Mas a República não retirou o Exército e deu instruções aos governadores civis para que atuassem em suas cidades contra a queima. Aquilo não podia voltar a ocorrer, e a República tomou medidas para salvar a arte, não como os amotinados”, argumenta Cabañas.
Para o Arturo Colorado, catedrático da Universidade Complutense de Madri, a experiência da retirada do acervo foi um “precedente fundamental”. Àquela época, a Sociedade das Nações (antecessora da ONU) preconizava a proteção in situ, mas a ação espanhola “demonstrou que a melhor alternativa era a evacuação”. “O Prado se conserva na íntegra graças ao traslado”, conta Colorado em referência ao bombardeio do museu por Franco. A ideia da República era mover o acervo para um armazém especial, um depósito gigantesco, mas o transcurso da guerra impediu sua preparação. “A evacuação e saída para estrangeiro era a única possibilidade”, acrescenta Colorado, que desmente que a República tenha alguma vez cogitado vender o tesouro artístico.
Entretanto, foi uma medida que contou com a oposição dos restauradores do Prado, à frente dos quais estava Francisco Javier Sánchez Cantón, subdiretor do museu, que em agosto de 1936 deu a ordem de fechar as portas, desmontar as salas e transferir todas as pinturas para os andares mais baixos. Defendia a teoria de transformar o museu em armazém... até que as bombas franquistas incendiaram o teto do Prado. Rafael Alonso, restaurador aposentado do museu, recorda as telas de El Greco que estiveram em uma caixa-forte do Banco da Espanha: “Ao serem retiradas, estavam podres e comidas pelo mofo. Salvaram-se graças à intervenção de Jerónimo Seisdedos. Para mim, é o melhor restaurador do Prado do século XX”, comenta. Alonso diz que a retirada do acervo foi um ensaio geral para o que ocorreu na Europa pouco depois.
Devolvidos em Genebra
A República nunca quis devolver os quadros, esculturas e tapeçarias. O acordo de Figueras determinou que fossem entregues à Sociedade das Nações, com sede em Genebra. “Dar o patrimônio ao outro lado teria sido reconhecê-los. Além disso, tinham medo de que o vendessem. A Suíça terminou reconhecendo o Governo de Franco poucos dias depois e lhe entregou as caixas”, recorda Cabañas.
A ideia original da República era levá-las a um armazém especial, um depósito gigantesco
O relato da salvação teve mais repercussão no exterior, onde o primeiro a estudá-lo, o catedrático José Álvarez Lopera, teve que esperar a Transição para a democracia após a morte de Franco (1975) para reabilitar a memória daqueles monuments men que executaram esta tarefa antes dos soldados norte-americanos que ganharam esse apelido na Segunda Guerra Mundial. O franquismo tratou de ocultar esse trabalho. Como recorda Alberto Porlan, escritor e diretor do documentário Las Cajas Españolas (2004), aqueles homens e mulheres cunharam uma expressão que definiu seu compromisso: “Se acertarmos nisto, ninguém recordará nossos nomes, mas se fizermos mal, nunca mais vão nos esquecer”.
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