União Europeia enfrentará um possível ‘Brexit’ selvagem em plena transição interna
Executivo continental assume que uma saída sem acordo é o cenário mais provável, mas espera adiar o abismo por algumas semanas ou meses depois de 31 de outubro
A chegada de Boris Johnson a Downing Street obrigou Bruxelas a revisar sua estratégia para administrar a saída do Reino Unido da União Europeia. O clube comunitário, com a exceção quase única da França, apostava até agora em prolongar o processo à espera de que o Reino Unido resolvesse sua profunda divisão política. Mas a posse do novo líder conservador disparou a probabilidade de que o Brexit seja concluído sem acordo em 31 de outubro.
A UE insiste em que está preparada para esse cenário indesejado. Mas fontes diplomáticas reconhecem que o calendário não favorece a União, que no fim de outubro estará em plena substituição institucional. As mesmas fontes apontam a hipótese de uma prorrogação técnica, que permita a Johnson cumprir sua promessa de abandonar a UE mesmo que de maneira brutal, mas algumas semanas depois de 1º de novembro.
A oferta desse breve período transitivo ainda não é oficial. Mas paira nas reuniões dos diplomatas dos 27 sócios da UE, conforme reconhecem fontes comunitárias. O plano poderia dar a impressão de que Bruxelas teme mais que Londres o impacto de um Brexit sem acordo. Mas as fontes consultadas asseguram que se trata justamente do contrário.
“O objetivo é demonstrar que aceitamos o desafio da saída sem acordo, mas que sua execução requer uns últimos preparativos em benefício das duas partes”, afirma uma dessas fontes. A pequena pausa técnica seria compatível com um possível adiantamento das eleições no Reino Unido, um desenlace que Bruxelas considera muito provável se o Parlamento britânico se negar a corroborar os planos de ruptura do novo premiê, forçando uma moção de censura contra seu Governo.
A prorrogação técnica, em todo caso, também permitiria à UE superar um delicado momento institucional. O mandato da atual Comissão Europeia, presidida por Jean-Claude Juncker, termina justamente em 31 de outubro. E em 1º de novembro, a data prevista para o abismo do Brexit se não haver acordo, tomaria posse a nova presidenta do Executivo continental, Ursula von der Leyen, se já tiver obtido a aprovação da Comissão no Parlamento Europeu. A jornada cai numa sexta-feira de feriado em muitos países, mas, com as Bolsas funcionando, o que poderia agravar o impacto econômico de um Brexit brutal.
A coincidência da substituição em Downing Street com a crescente disparada da atual Comissão e da equipe europeia negociadora do Brexit também inquieta os diplomatas. O negociador-chefe europeu, Michel Barnier, mostrou-se disposto a retomar os contatos com Londres assim que for necessário e a estudar qualquer proposta do novo Governo desde que seja compatível com o atual acordo de saída. Mas Barnier já perdeu a número dois de sua equipe, Sabine Weyand, considerada em Bruxelas como uma das forças motrizes essenciais da negociação.
Em 1º de agosto também deixará o cargo, de maneira prematura, Martin Selmayr, secretário-geral da Comissão Europeia e braço direito de Juncker. Selmayr acompanhou a negociação do Brexit na linha de frente, e sua influência foi tangível em quase todas as decisões mais relevantes do processo, da escolha de Barnier como negociador até a concessão a Theresa May de duas prorrogações consecutivas para consumar a saída.
Fontes diplomáticas reconhecem que a ausência de Selmayr e de Weyand debilita o flanco europeu, sobretudo se vier a ocorrer algum tipo de renegociação do acordo. Johnson falou por telefone com Juncker em 25 de julho e deixou claro que “o acordo de saída foi rejeitado três vezes pelo Parlamento britânico e não será aprovado em sua versão atual”, segundo a versão do telefonema fornecida por fontes britânicas. No dia seguinte, Johnson telefonou para a chanceler (primeira-ministra) alemã, Angela Merkel, expressou-se em termos semelhantes e destacou que a solução devia passar por eliminar os termos do acordo em torno da salvaguarda irlandesa, o chamado backstop, que pretende evitar uma fronteira dura entre a República da Irlanda (dentro da UE) e a Irlanda do Norte (território britânico).
Johnson deixou claro desde sua posse, na quarta-feira passada, que a prioridade do novo Governo é que o Reino Unido esteja fora da UE em 31 de outubro. “Se não for assim, haveria uma catastrófica perda de confiança em nosso sistema político”, afirmou Johnson. E em suas primeiras 24 horas como primeiro-ministro já endureceu o tom perante o que se avizinha.
Em 24 de julho, Johnson qualificava de “remota” a possibilidade de que Bruxelas se negue a renegociar o acordo de saída selado em novembro de 2018 entre os 27 sócios remanescentes da UE e o Governo de Theresa May. No dia seguinte, em seu primeiro discurso ao Parlamento, ele ainda mantinha sua oferta de diálogo, mas advertia que, se Bruxelas recusá-la, o Reino Unido sairá sem acordo e usará o dinheiro devido à UE como fatura de despedida para mitigar o impacto da ruptura.
Ou seja, que Bruxelas deveria deixar de lado a cobrança de quase 200 bilhões de reais que May aceitou pagar em 2019 e 2020 sob o conceito das contas pendentes, e dos compromissos assumidos por Londres para projetos de longo prazo e para o pagamento de pensões dos funcionários europeus que estiveram na ativa durante os 46 anos em que o Reino Unido permaneceu no clube comunitário.
A Irlanda treme
O crescente risco de um Brexit sem acordo causa grande preocupação na República da Irlanda, o país potencialmente mais afetado pela ruptura, por ter fronteira terrestre com o Reino Unido. Dublin também acelerou os preparativos nesta fase de aproximação do abismo, após meses relutando a aceitar o risco de uma hecatombe política e econômica. Em 9 de julho, o Executivo irlandês atualizou o plano de contingência, e seu tom e previsões são muito mais sombrios que o anterior (datado em dezembro de 2018), quando a ameaça de um Brexit sem acordo parecia muito longínqua.
A Irlanda calcula que a ruptura representará a perda de três pontos percentuais de crescimento do PIB no primeiro ano, e que o impacto continuará sendo sentido durante uma década. O prejuízo será considerável em setores como o agrícola, alimentício, industrial e turístico. Os postos de trabalho perdidos rondariam os 50.000. O impacto fiscal alcançaria os 25 bilhões de reais em 2020.
A Irlanda acumulou um colchão financeiro de oito bilhões de reais para tentar amortecer o desastre. Mas Bruxelas dá como certo que o país necessitaria de ajuda da UE para superar o transe. “A Comissão Europeia está pronta para trabalhar com os países mais afetados”, recordou na semana passada a porta-voz comunitária Natasha Bertaud. “A Comissão já explorou como seria possível mobilizar os recursos e programas caso não haja acordo e caso o Reino Unido não pague o que está previsto no regulamento de contingência dos recursos europeus”, acrescentou Bertaud.
O pânico também parece se apoderar dos cidadãos britânicos, em particular da Irlanda do Norte, ante o perigo de perderem a liberdade de movimento na ilha e com o resto da UE. Dublin detectou uma forte demanda por passaportes irlandeses desde o referendo do Brexit, em 2016. E a avalanche por enquanto cresce. Entre janeiro e junho deste ano, a Irlanda registrou 47.645 solicitações de passaporte procedentes da Irlanda do Norte e 31.099 da Grã-Bretanha, segundo dados do Governo irlandês. As cifras representam um aumento de 650% e de 214%, respectivamente, com relação ao primeiro semestre de 2016.
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