Boris Johnson, a ambição loira que comandará o Reino Unido
O sucessor de Theresa May chega ao cargo como a grande esperança dos conservadores eurocéticos
“Ah, o Boris…!” A primeira reação à pergunta é sempre a mesma. Um sorriso paternalista, uma careta de ironia ou um gesto de desprezo mal dissimulado. E, a seguir, uma longa pausa para dar a entender que, a esta altura, ninguém foi capaz de decifrar o personagem. Nesta terça-feira, o ex-prefeito de Londres venceu as primárias do Partido Conservador com 92.153 votos e se tornará o novo primeiro-ministro do Reino Unido. Seu rival, o ex-chanceler Jeremy Hunt, obteve 46.656 votos.
Alexander Boris de Pfeffel Johnson (Nova York, 55 anos) é o bufão que faz todos rirem, o Falstaff de Shakespeare que não se esforça em dissimular suas imperfeições e estupidezes e as transforma na sua principal virtude. Ou o Macbeth devorado pela ambição e a dúvida, introvertido e sedutor, impulsionado por uma irresistível força e paralisado pela indolência, complexo e infantil.
"É o filho de um pai muito extrovertido e de uma mãe artista. Acha-se um personagem homérico. A maioria dos políticos segue as normas de comportamento convencionais. Mas Boris vê a si mesmo como um herói clássico. Uma espécie de Ulisses. Não se sente atado pelas normas de inibição que os deuses impuseram aos simples mortais”, analisa uma pessoa que lidou com ele durante os anos do novo premiê como correspondente do The Daily Telegraph em Bruxelas, além de ter sido seu colega de bancada do Partido Conservador no Parlamento e conhecer como ninguém a psicologia dos tories – e que, entretanto, como muitos outros neste momento, sabe que o vento sopra a favor do escolhido dos deuses, e que é melhor falar do anonimato. “É a criança que vê um sorvete na sua mão e pensa: ‘Eu quero!', e o arranca da sua mão”, conclui.
Ninguém confia em Boris Johnson. E, entretanto, ele se tornou a última esperança dos conservadores para não serem arrastados à irrelevância. O único político capaz de confrontar a irresistível ascensão do Partido do Brexit do ultranacionalista Nigel Farage. A solução desesperada para frear a maré, que levou muitos de seus correligionários a lhe oferecerem seu respaldo com o nariz tampado, porque é hora de “saber em que lado da sua torrada está a manteiga”. Ou seja, o que é o mais conveniente para salvar o banco.
“Boris tem um senso histórico muito desenvolvido. Não é uma coincidência que seja autor de vários livros de história. Parece ser uma pessoa guiada pelo destino e por sua presença central nele”, explica apaixonadamente Steve Baker. O deputado é um dos líderes do Grupo de Pesquisas Europeias, a poderosa corrente parlamentar de conservadores eurocéticos que escreveram o roteiro da política britânica nos últimos anos. Foi um dos que mexeram os pauzinhos para que, desta vez, a estratégia desse certo e Johnson se tornasse o primeiro-ministro que, esperam, tirará definitivamente o Reino Unido da União Europeia. Tanto faz a veia libertária do candidato, quase social-democrata, alheia ao neoconservadorismo do grupo. “Neste momento já não existem mais soluções de baixo risco”, conclui Baker.
Porque, com Johnson, o risco está garantido. Embora sua maior vantagem, e também seu principal obstáculo, seja que ninguém o leva a sério. O mesmo político que se permitiu, em suas habituais colunas na imprensa, se referir à população africana como picaninnies (pretinhos) e zombar dos seus “sorrisos de melancia” também defendeu, como prefeito de Londres, uma anistia geral para as dezenas de milhares de imigrantes irregulares chegados ao Reino Unido durante os anos de Tony Blair. O mesmo linguarudo que descreveu as mulheres muçulmanas que vestem burka como “caixas de correio” e “assaltantes de bancos” é o primeiro a exibir com orgulho suas origens familiares turcas.
Seu bisavô Ali Kemal, jornalista e político a serviço dos últimos dias do Império Otomano, se tornou inimigo da revolução nacionalista de Mustafá Kemal Atatürk e acabou linchado e esquartejado por uma turba. Esse cabelo loiro, amarelo, quase branco, que Johnson cuidadosamente desordena antes de sair à cena, tem paradoxalmente a origem circassiana da Anatólia, e não a anglo-saxã dos invasores do sul da Inglaterra.
De seu pai, Stanley Johnson (78 anos), escritor, político e bon vivant, herdou um alto conceito de si mesmo, o hábil manejo do humor e a sorte gratuita de que tem claro seu lugar no mundo: entre os de cima. O empenho de Stanley em que frequentasse o prestigioso colégio privado Eton, trampolim de líderes com intrínseca consciência de classe, e que depois tivesse aulas em Oxford, assegurou que Boris contasse no futuro com os contatos e a rede de apoios necessários para rebaixar suas fraquezas e assegurar que seus erros nunca chegaram a ser definitivos.
De sua mãe, a pintora Charlotte Johnson Wahl (77 anos), mergulhada durante anos na solidão e depressão provocadas pelas contínuas ausências e aventuras amorosas de Stanley, Boris adquiriu a sensibilidade, cultura e senso de ironia, patrimônio de uma família sempre vinculada a causas sociais e políticas como o sufrágio feminino.
Como jornalista em Bruxelas, durante os anos de impulso federalista do carismático Jacques Delors, Johnson foi o criador de um estilo irreverente e exagerado de euroceticismo, infestado de meias verdades e humor, que enlouquecia os funcionários da UE e do Governo britânico. Títulos distorcidos, como o que acusava a Comissão Europeia de impor um tamanho único de preservativos para todos os cidadãos – tratava-se de harmonizar as regras mínimas de segurança perante a ameaça da AIDS – e outro que denunciava os esforços dos burocratas comunitários para proibir as batatas fritas sabor camarão – petisco que os britânicos adoram – fizeram de Johnson o ídolo dos conservadores eurocéticos que até então só podiam expressar em voz baixa sua repulsa pela UE. Foi também um modelo a imitar para todos os jornais concorrentes do The Daily Telegraph.
Ex-prefeito de Londres
Ao se tornar o primeiro conservador a assumir a prefeitura de Londres, em 2008, aprendeu a delegar tarefas a uma equipe de políticos e comunicadores eficazes, a se cobrir de medalhas, a descobrir as vantagens políticas da megalomania – será sempre o prefeito dos gloriosos Jogos Olímpicos de 2012, ainda que poucos recordem seu empenho em construir uma ponte sobre o canal da Mancha – e a experimentar em primeira mão os dividendos do populismo.
No verão de 2011, a morte de Mark Duggan, um londrino negro de 29 anos alvejado pela polícia, foi a fagulha que detonou uma onda de distúrbios, protestos e vandalismo que se espalhou pela capital. Johnson estava do outro lado do mundo. De férias no Canadá com sua família, por uma mistura de preguiça inata e medo de irritar sua mulher, Marina Wheeler, prestes a explodir após suportar anos de seus devaneios amorosos com outras mulheres, prostrou-se num estado de paralisia. Só reagiu ao tomar consciência da avalanche de críticas por sua ausência – aproveitada pela então ministra do Interior, Theresa May, para assumir o controle da situação.
Para seu espanto, ao desembarcar notou como os habituais aplausos e palavras de incentivo a que estava acostumado se transformaram em vaias e recriminações. O mestre do golpe de efeito, o homem sempre capaz de extrair um sorriso de seu público, não soube como consolar uma cabeleireira do bairro de Clapham que teve seu estabelecimento depredado. Foi, entretanto, um novo toque de genialidade, o toque Boris, que o salvou do desastre. Agarrou uma vassoura verde que alguém de sua equipe, por acaso, tinha à mão e começou a varrer até que os impropérios se transformassem novamente em aplausos.
É o mesmo toque de genialidade que o levou a percorrer o país a bordo de um ônibus, durante a campanha do referendo do Brexit de 2016, e propagar com sucesso uma nova mentira: a infame cifra, pintada no veículo, de 350 milhões de libras (1,17 bilhão de reais, em valores atuais) que os britânicos economizariam por dia e que poderiam destinar ao maltratado Serviço Nacional de Saúde caso decidissem fechar a porta na cara da UE.
A cada insulto que os inimigos de Johnson lhe dedicaram nos meios de comunicação, a cada vez que um político levava as mãos à cabeça perante a ideia de que o futuro do país estivesse nas mãos de um personagem tão estrambótico, sua popularidade crescia. Nos últimos meses, a única coisa que poderia abortar sua trajetória até as portas da Downing Street, 10, residência oficial do primeiro-ministro do Reino Unido, seria ele mesmo com outra de suas imprevisíveis estupidezes. Porque, como escreveu Sonia Purnell, colega de redação nos anos de Bruxelas e autora da biografia mais incisiva e completa do político (“Just Boris: a Tale of Blond Ambition”), “enquanto não demonstrar que tem um projeto que vai além da mera conquista do poder, sempre permanecerá a suspeita de que só tem uma causa: a causa do Boris”.
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