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“Voltaria a fazer exatamente a mesma coisa”, diz a capitã presa por salvar refugiados no mar

Capitã Carola Rackete explica ao EL PAÍS suas impressões sobre a manobra com 41 imigrantes a bordo que mudou a política de portos fechados na Itália

A capitã Carola Rackete, nesta quarta na Sicília.Vídeo: Sea Watch. | Agências / EPV
Daniel Verdú

Carola Rackete (Preetz, Alemanha, 1988) é uma das pessoas mais procuradas na Itália. A conversa com o EL PAÍS aconteceu em alguns momentos por Skype e em outros por telefone enquanto ela viajava em um carro que acabou a bordo de uma balsa na Sicília. Na terça-feira, 9 de julho, tinha de prestar depoimento perante a juíza em Agrigento pelo crime de favorecimento de tráfico de imigrantes do qual ainda é acusada. Mas, coisas da Itália, uma greve impediu a audiência e ela deverá esperar mais 10 dias. Ela foi embora, mas preferiu não dizer para onde. A pressão foi insuportável.

Formada em Ciências Marinhas, Rackete é capitã especializada a bordo de um navio quebra-gelo no Ártico e atualmente à frente do navio humanitário Sea Watch 3, que no dia 12 de junho resgatou dezenas de migrantes resgatados à deriva no mar Mediterrâneo. Hoje é o símbolo mais poderoso da resistência à política migratória de extrema direita do ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini. Depois de 16 dias no mar, cansada de esperar por uma solução política que não chegava nunca, decidiu desobedecer o Governo italiano para rumar ao porto de Lampedusa com 41 imigrantes a bordo e terminar com uma farsa política que durava um ano: os portos da Itália não estão fechados. Isso foi confirmado pela realidade e pela juíza que lhe deu razão pouco depois em um auto demolidor contra o decreto Salvini.

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Pergunta. Como você encara o fato de ter se tornado um símbolo da resistência à política de portos fechados de Salvini?

Resposta. Foi uma situação complicada. Sabíamos que romper essa lei iria atrair muita atenção. Então entendemos mais o que significava e quem nós representávamos. Muita gente está ajudando os migrantes na Europa, acolhendo refugiados. Por isso me parece pouco natural ou justo que a atenção se concentre agora em uma só pessoa.

P. Mario Vargas Llosa anunciou neste jornal no sábado que pedirá que concedam o Prêmio Nobel da Paz a você.

R. Fiquei muito surpresa. Minha irmã me mandou a informação, que um amigo havia lhe passado. Mas que este gesto tenha desencadeado tudo isso me faz compreender que a invisibilidade do nosso trabalho é enorme. Existem milhares de pessoas fazendo coisas maravilhosas todos os dias.

P. Duas semanas se passaram desde que entrou no porto desobedecendo o Governo italiano. Desde então, algumas coisas mudaram. Você faria isso outra vez?

R. Se estivesse na mesma situação, sim. Não tínhamos escolha, devíamos zelar pela segurança daquelas pessoas. Mas o mais interessante de toda essa atenção midiática e do que fizemos é que houve mudanças. O Alan Kurdi [navio ONG alemã Sea Eye], por exemplo, recebeu outro dia a oferta de desembarcar em Malta, deram-lhes barcos para o transbordo e a Europa se ofereceu para acolher os migrantes. E isso é exatamente o que queremos e o que se conseguiu em duas semanas. Isso mostra o impacto direto da ação.

P. Rompeu-se um muro fictício?

R. Havia uma concepção equivocada da política de imigração. Financiar e apoiar a Guarda Costeira da Líbia para empurrar as pessoas para um país onde há uma guerra civil é algo completamente equivocado. Outros capitães antes de mim foram instados a devolvê-los ali. Se não o fizessem, seriam criminalizados e tratariam de prendê-los. Essa causa tornou visível que muitas coisas estão sendo feitas de maneira errada. O Ministério do Interior nos deu muita publicidade.

P. O promotor disse que não se justificava o estado de emergência que você invocou para entrar. Qual era a situação real a bordo antes da sua manobra?

R. Muito tensa. Todos os dias recebia relatórios da equipe médica, dos psicólogos e da tripulação, tudo estava piorando. O navio não está preparado para ter 40 pessoas a bordo durante tantos dias. Não havia privacidade, eles não poderiam tomar uma ducha, os banheiros químicos não funcionavam... Toda essa gente vem de um país em guerra civil, tinham sofrido abusos, torturas também. Não tínhamos uma visão clara do futuro e isso aumentou a ansiedade até o ponto de que algumas pessoas ameaçaram se suicidar... Eram pessoas que já tinham tentado. A equipe médica nos deixou muito claro que já não podia garantir a segurança dessas pessoas por mais tempo. E essa era uma linha vermelha.

Carola Rackete a bordo do navio humanitário Sea Watch 3.
Carola Rackete a bordo do navio humanitário Sea Watch 3.Efe

P. Salvini diz que iria deixá-los desembarcar na manhã seguinte. Você acredita?

R. Ele teve 16 dias para fazer isso e ninguém em posição de autoridade moveu um dedo. Muita gente nos disse que uma solução política chegaria, mas os dias passavam sem resultados. Não tive nenhuma confirmação oficial e a situação era extremamente crítica. Ninguém resolveu o problema em 16 dias. E isso é um fracasso enorme do Parlamento italiano, mas, principalmente, da Comissão Europeia. Depois desse tempo, eu não podia confiar em ninguém e nem que chegasse uma solução política.

“A União Europeia financia criminosos na Líbia”

P. Na manobra o navio colidiu com uma lancha da Guarda Financeira. O que aconteceu?

R. Foi um acidente não intencional. A lancha tentou nos bloquear e se colocou no cais no momento em que estávamos entrando. Ela fez isso três minutos antes e a situação foi muito infeliz. O acidente poderia ter sido evitado se a reação do Governo italiano tivesse sido diferente. Eles não nos ajudaram em nada.

P. Hoje, restam menos ONGs no Mediterrâneo e algumas já têm uma grande dívida por causa de multas. Salvini está ganhando?

R. Não, de jeito nenhum. A Proactiva está lá fora, o Alan Kurdi [navio da ONG alemã Sea Eye] está fora. A igreja protestante alemã quer fretar um navio e algumas outras organizações têm planos de fazê-lo. Existe um grande interesse em continuar e tenho certeza de que o farão.

P. Enquanto tudo isso acontecia, Salvini crescia nas pesquisas e você era recebida com insultos no cais. A Itália se tornou um país racista?

R. A situação está extremamente polarizada. Vemos isso também no Reino Unido e na Alemanha. O futuro nos dirá para onde vai a Europa, mas aqueles que estão no meio em silêncio devem levantar suas vozes. As pessoas que não se manifestaram devem se posicionar. E teremos que entrar em um acordo que a vida das pessoas tem o mesmo valor, independentemente de onde venham. É hora de que a parte central da sociedade contenha essa polarização e se coloque do lado do direito internacional.

P. A Europa esteve à altura?

R. Absolutamente não! Está financiando a Guarda Costeira da Líbia e um regime que permite a tortura e o tráfico de seres humanos. A União Europeia não deveria cooperar com organizações como essa. Financia criminosos sabendo que o são. Tenho vergonha de que o meu Governo, um país como a Alemanha, e a União Europeia apoiem esses criminosos. Jamais vou entender.

P. Ouvindo-a e vendo o que fez, não há dúvida de que virão procurá-la para a política. Você aceitaria?

“O sexismo pesou na reação de Salvini. Eu o denunciei, vamos ver se ele comparece ao julgamento”

R. Gosto muito de política e acho que tudo o que fazemos é político de alguma forma. Mas nunca considerei isso como uma profissão. O ativismo é parte dessa política, mesmo que você não tenha uma cadeira no Parlamento.

P. O ativismo também tem suas coisas. Desta vez, tentaram ridicularizá-la e dizer que é uma filhinha de papai para deslegitimá-la.

R. Fiquei surpresa porque não é verdade. Mas esperava algo assim da imprensa de extrema direita, esse é seu funcionamento. Eu venho de uma família de classe média, fui a duas universidades gratuitas e tive uma boa educação graças ao sistema social da Alemanha. Não venho de um contexto rico.

P. O que sua família lhe contou nos últimos dias?

R. Não falei com eles durante todo o processo. Minha mãe trabalha em projetos sociais cristãos com prisioneiros, então ela entende essas coisas. E meu pai é conservador, mas está de acordo que não se deve deixar ninguém morrer. Minha família me apoiou e estão orgulhosos, mas eles também receberam muita pressão da imprensa.

P. Você acredita que o fato de ser mulher pesou na reação agressiva de Salvini?

R. Estava muito ocupada naqueles dias e não pude ouvi-lo e nem ver as redes sociais. Mas o advogado me disse faz dois dias que tinha guardado todos os comentários que Salvini fez ao meu respeito: muitos deles eram sexistas. Não me surpreende, realmente, porque muitas mulheres que recebem atenção são vítimas desses comentários. Mas é ridículo que em 2019 não exista igualdade. Sim, acredito que a questão de gênero teve um papel importante.

P. Você o denunciou?

“É hora de que a parte central da sociedade contenha essa polarização e se coloque do lado do direito internacional"

R. Sim, veremos se ele comparece ao julgamento. Mas nós registramos 15 insultos ou acusações infundadas. Você não pode chamar alguém de criminoso se não é, e menos ainda se você é um político de uma posição tão elevada: é chocante que ele use essas palavras.

P. O auto da juíza é demolidor com a lei Salvini. Como foi o interrogatório e aquele momento?

R. Ela fez uma exposição muito clara do caso, do começo ao fim. Disse que a lei de Salvini só pode ser aplicada aos traficantes, e esse não é o nosso caso. Os juízes são independentes, apesar da pressão política que recebem.

“Essa causa tornou visível que muitas coisas estão sendo feitas de maneira errada. O Ministério do Interior nos deu muita publicidade”

P. Depois da sua experiência e do que leu no auto, diria que os portos da Itália estão fechados?

R. É muito difícil responder. A situação não está clara. Ficou demonstrado que o direito marítimo internacional é mais forte do que a regulamentação italiana e, portanto, os portos estão abertos. Mas, por outro lado, o medo da criminalização e o fato de que muitas ONGs evitam ir para a Itália complicam a situação. Não é fácil.

P. Se o navio lhe for devolvido e você ficar livre, voltará ao mar?

R. Se a investigação terminar e o navio for liberado, é claro. Há muito a fazer. Na semana passada 80 pessoas morreram e há naufrágios constantemente. A necessidade está no mar, onde as pessoas morrem todas as semanas.

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