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Tribuna
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Justiça e política tornam-se perigosamente iguais

Diálogos vazados de Moro e Dallagnol aumentam a percepção de que a justiça também pode atuar politicamente.

Ministro da Justiça, Sergio Moro.
Ministro da Justiça, Sergio Moro. ADRIANO MACHADO (REUTERS)
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O debate político brasileiro desta semana girou em torno do barulho causado pela reportagem com os diálogos entre Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, revelados pelo The Intercept. A conversa do atual ministro da Justiça e ex-juiz da 13ª vara federal de Curitiba e do procurador da República responsável pela força tarefa da Operação Lava Jato mostram que, na verdade, a relação entre magistrado e membros do Ministério Público estava longe de guardar a devida reserva de quem julga e de quem acusa. As mensagens publicadas no domingo, dia 9, foram repercutidas a exaustão. Na noite desta sexta, 14, novas conversas vieram à tona, desta vez o foco era na disputa midiática, sendo que o magistrado era quem sugeria uma estratégia pública por parte da promotoria para rebater a defesa. É um novo capítulo da tática de revelar o material aos poucos, deixando o assunto sempre quente. De maneira irônica, esse modus operandi atento ao timing lembra o que foi usado pela própria Lava Jato.

O conteúdo da troca de mensagens revelado até agora vai desde pistas sobre testemunhas repassadas do juiz ao procurador à sugestão de inversão de fases da investigação, e passando por cobranças sobre determinados procedimentos. As conversas apresentam Moro comportando-se como o chefe da força tarefa e isso trouxe à tona, a um público diverso do habitual, o questionamento básico sobre o papel do julgador em um processo que obedeça ao mínimo critério de isenção. Esse é um ponto central do que se tem discutido publicamente. Como já perguntamos uma vez: “Afinal, o que colocar no lugar do ideal de juiz imparcial” .

A imparcialidade e os papeis distintos de quem julga e acusa somam-se a outra questão relativa à natureza da Justiça, especificamente a diferença do que é justo e do que é justiçamento ou vingança. Esses são, via de regra, os argumentos que permeiam o debate público, fora aqueles que se debruçam sobre a legalidade da publicação. Enquanto alguns veículos discutem se há ou não hacker, o enredo continua a tomar a forma inconteste da disputa política.

O ponto em comum do que se viu em diversas abordagens é: além de Moro, Dallagnol e cia, este “ente” chamado Justiça entrou no escrutínio popular de uma forma gigantesca. É difícil achar precedentes, seja pelo barulho, seja pela extensão das consequências que envolvem a possibilidade de nulidade processual até a reavaliação sobre a lisura do pleito e a narrativa política das últimas eleições. Tais questões não são propriamente uma novidade, contudo seu lastro agora é outro.

Neste ponto, sem escapar à tentação da referência, é importante sair da conjuntura e atentar ao "mecanismo" da ação. Há uma questão que se desloca do debate sobre a natureza da Justiça e talvez seja a mais importante dentro de uma análise histórica: a percepção de que a justiça é política, ou melhor dizendo, político-partidária.

A noção do comportamento político da Justiça não é uma novidade para os estudiosos da área. Mas longe de tabelas, escalas de votos e outras variáveis, o que se fala aqui é da percepção popular. O apoio dado à Lava Jato sempre baseou-se na crença de uma depuração da política pela justiça. Um terreno em que o “vale tudo” seria limpo pela ética dos que se atentam às regras e à lisura. A virada se dá exatamente pela compreensão de que a justiça também pode atuar politicamente. São pares, portanto sujeitos às mesmas consequências. Essa inflexão tem contornos decisivos e sérias consequências.

A perigosa mudança de chave serve para indivíduos que passam a ser cobrados em uma medida à qual não estão acostumados. Destacam-se dois exemplos: na manhã de segunda-feira, dia 10, Sérgio Moro deixou abruptamente uma coletiva de imprensa, em Manaus, após ser questionado sobre o material divulgado e, na quinta-feira, dia 13, viu sua avaliação positiva cair de 60%, em maio, para 50,4% também após a divulgação das mensagens - segundo dados da consultoria Atlas Político. Um contraponto é a pesquisa da XP/Ipespe em que 47% dos 1.000 entrevistados não mudaram sua percepção sobre Lava-Jato após os vazamentos. Detalhe: mesmo assim, a avaliação pessoal de Moro caiu de 6,5 em maio para 6,2 agora.

O mesmo raciocínio serve para as instituições que também desconhecem o peso do questionamento público que não obedece a protocolos e hierarquias. O recente episódio do inquérito secreto do Supremo dá provas disso. Dito de forma direta, o cenário de exacerbação das condutas nos faz lembrar uma conhecida advertência popular que diz: “não sabe brincar, não desce no play”.

Contudo, para pensar de forma mais ampla, a história brasileira tem nos militares outro exemplo importante. Afastados da vida política desde o fim da ditadura, a caserna vê sua imagem pública se desgastar junto com o governo Bolsonaro. Uma pesquisa do Ibope apontava que de janeiro a abril deste ano o número de eleitores brasileiros que acham boa ou ótima a ideia de um governo militar no Brasil caiu de 62% para 49%. Estamos em junho e não seria difícil imaginar uma queda maior nesse número. Aliás, vale lembrar que no início dos anos de 1980, com a inflação batendo a casa dos 200% e um cenário mundial de enfraquecimento dos regimes militares, há relatos de praças e oficiais que saíam de casa à paisana para evitar constrangimentos na rua. Moral da história: fazer política tem seu preço, em especial quando ela não se sustenta em baionetas mas na aprovação popular. Seguir esse caminho pela via processual atinge a quem usa desse exercício e ao Sistema de Justiça como um todo e à própria democracia.

Nesse panorama histórico, é preciso destacar que Judiciário e o Ministério Público (que até a Constituição Federal de 1988 era um braço do Executivo) nem de longe estiveram em posição semelhante de poder e de desgaste como os militares. A Lava Jato abriu caminho para esse epicentro. Mesmo sendo hoje ministro da Justiça, Sérgio Moro chegou ao cargo pela sua atuação como magistrado. A corrosão do seu nome e da Lava Jato não ficará restrita a um indivíduo ou ao grupo que compõe a força tarefa.

O preço da política mundana, sem heróis, bate à porta do sistema de Justiça. Ainda que a “fritura” da Lava Jato demore mais tempo (a essa altura é impossível medir os efeitos), parece impossível evitar que se espraiem as consequências. Passada a primeira semana da divulgação das mensagens já se viu nota da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pedindo o afastamento de Moro e Dallagnol, burburinho sobre uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) por parte do Congresso, hashtag #vazajato subindo nos trends topics em antagonia a #euapoioalavajato e jogo no estádio Mané Garrincha, em Brasília, com Moro vestindo a camisa do Flamengo ao lado de Bolsonaro.

Os exemplos falam por si. Em síntese: a Lava Jato colocou a Justiça na disputa - política - das narrativas. Esse é um caminho que parece sem volta. Seja qual for o resultado, na sua equação está a compreensão de que não há distinção de meios para obter determinados fins. Justiça e política tornam-se perigosamente iguais.

Grazielle Albuquerque é jornalista e doutora em Ciência Política pela Unicamp. Pesquisa Sistemas de Justiça, em especial sua interface com a mídia.

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