Os dilemas de uma Justiça ancorada na opinião pública
Há uma crise na Justiça que a Lava Jato enceta, mas que vai além dela: afinal, o que colocar no lugar do ideal de juiz imparcial?
O hoax da frase “Não temos provas, mas temos convicção”, uma síntese inventada da denúncia contra Lula que viralizou, e a explosão de memes sobre o Power Point apresentado pelo procurador da República Deltan Dallagnol e sua equipe na coletiva de imprensa realizada na terça-feira, dia 14, foram um espécie de catarse de algo que essencialmente caracteriza a Lava Jato: a necessidade de legitimação diante da opinião pública. Essa não é uma jabuticaba brasileira. A operação Mãos Limpas, na qual a Lava Jato se inspira, também seguiu esse caminho. Mesmo por aqui, em diversos outros momentos o Sistema de Justiça buscou se legitimar com estratégias que ansiavam pelo apoio popular.
Em um breve retrospecto podemos lembrar da campanha do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) levantando a bandeira do combate ao nepotismo no momento em que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) questionava sua constitucionalidade. Mais adiante, a então corregedora geral de Justiça, Eliana Calmon, causou imenso barulho em uma entrevista em que afirmava haver “bandidos de toga”. A repercussão da sua fala, justamente quando se questionavam os poderes de investigação do CNJ, tirou a discussão do campo corporativo e levou o debate sobre o papel das Corregedorias para a arena pública. Podemos citar diversos exemplos como esses, contudo, há uma diferença significativa entre eles e o que vemos agora. Distante de uma disputa meramente institucional, ou seja, sobre funções, prerrogativas etc, o que a Lava Jato exacerba é uma linha antagônica entre a Justiça e a Política.
Mesmo no julgamento da Ação Penal 470, o famoso mensalão, esse anteparo na opinião pública obedecia a contornos mais institucionais. Vale lembrar que ainda que o ápice do processo tenha ocorrido entre 2012 e 2013, quando se julgaram o mérito e os embargos infringentes, a denúncia do caso foi recebida pelo Supremo Tribunal Federal em 2007. Ou seja, mesmo com o imenso aparato midiático, seguindo todas as fases, foram seis anos para se chegar a uma decisão colegiada.
Vista em perspectiva, a Lava Jato inova em um processo de aproximação entre mídia e Justiça que é antigo. Por isso ela não é propriamente um ponto fora da curva pela relação que estabelece com a opinião pública, mas pela forma como o faz. Com uma estratégia calcada em delações e vazamentos, a operação usa como cerne ferramentas completamente estranhas ao universo da assessoria de comunicação tradicional. Não se pode dizer que não existam elementos como releases ou notas oficiais, mas a verdade é que o juiz Sérgio Moro sempre foi mais eloquente pelos atos que pratica. Nesse quesito, a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a liberação do áudio em que ele fala com a então presidenta Dilma Rousseff são os exemplos mais significativos dessa estratégia, que usa instrumentos processuais como a forma mais contundente de enviar uma mensagem.
Em paralelo, nunca se viu uma operação com tantos adereços: almoço com celebridades, ovo de páscoa, canecas, camisetas, cartazes, uma série de livros sobre a operação... Em Curitiba, em frente à Justiça Federal, desde março deste ano, formou-se um acampamento em apoio à Lava Jato com diversos grupos (uns tinham como bandeira o impeachment, outros apoiavam a intervenção militar, outros queriam novas eleições). De todos os ícones, talvez os bonecos infláveis que colocavam Dilma e Lula com roupas de presidiários e Sérgio Moro como um super-herói seja a maior representação dessa oposição entre o mal e o bem, a Política e a Justiça.
Aqui é importante separar os personagens do que eles representam. Ainda que pese sobre a Lava Jato a necessidade de provar que é capaz de investigar além de um partido só – o que é crucial para a credibilidade da própria operação –, há duas questões fundamentais que vão além desse ponto. A primeira é o risco de se colocar a Justiça como algo moral que se opõe a uma Política imoral. Este costuma ser um perigoso precedente para oportunistas de plantão ou para regimes fascistas que, sob o manto da “pureza”, vão esvaziando os espaços de deliberação próprios do sistema político. Reduzir a questão a mocinhos e bandidos é tanto deixar de lado uma grande oportunidade de aperfeiçoar os mecanismos de combate à corrupção de forma não pontual quanto de exercitar o controle da política nos espaços que lhe são devidos.
A segunda questão é que, ao se ancorar de forma tão direta na opinião pública, o Judiciário abandona seu modelo liberal clássico que o legitimava exatamente por seu papel contramajoritário, distante das pressões populares. Ser contra esse caminho a essa altura do campeonato talvez seja como ser contra o verão. Se o passo dado nesse rumo for irreversível, há uma crise na Justiça que a Lava Jato enceta, mas que vai além dela: afinal, o que colocar no lugar do ideal de juiz imparcial? Embora na prática se saiba que isso nunca existiu, o que muda agora não é uma percepção, mas a necessidade de o Judiciário rever seu papel enquanto instituição que, sim, se interessa e age tendo como referência a opinião pública.
Uma vez tomada essa direção, ao se assumir como instituição política e midiática, ainda que com contornos diferentes dos poderes eletivos, o Judiciário (e até mesmo o Ministério Público, que é parte da ação, mas também cumpre o papel de fiscal da lei) terá que aprender que esse é um caminho com benefícios e constrangimentos. Então cabe a pergunta: é possível haver uma regulação desse novo modelo? O fato é que em seu desenho nem sempre o aplauso é garantido. Nisto, episódios como o do Power Point mostram que não dá para entrar numa disputa na arena pública sem a devida consciência dos seus riscos. Neste caso, tanto há provas como convicção.
Grazielle Albuquerque é jornalista e doutoranda em Ciência Política pela Unicamp.
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