_
_
_
_

Uma campanha interminável na Espanha

Ao contrário do que acontece em outros países, o inimigo espanhol não é externo. A Catalunha, e ultimamente a Espanha, vivem em estado de exaltação nacional permanente

Claudi Pérez
O primeiro-ministro Pedro Sánchez, com Susana Díaz (à esquerda) e a ministra da Fazenda, María Jesús Montero, em um comício eleitoral em Dos Hermanas (Sevilha).
O primeiro-ministro Pedro Sánchez, com Susana Díaz (à esquerda) e a ministra da Fazenda, María Jesús Montero, em um comício eleitoral em Dos Hermanas (Sevilha).Jose Manuel Vidal (EFE)

A política é uma disciplina narrativa: não é coincidência que o parlamentarismo moderno seja contemporâneo de Shakespeare e Cervantes. Recentemente, foram encontrados no mundo evidências de uma nova espécie humana, foi fotografado pela primeira vez um buraco negro, desprendeu-se um pedaço da fachada da sede do Partido Popular (PP) – a tentação da metáfora – e o primeiro-ministro (presidente do Governo espanhol) Pedro Sánchez aceitou enfim sair de sua torre de marfim para debater com os demais candidatos, incluindo Santiago Abascal, e dar início a corrida eleitoral no país, que terá eleições gerais no dia 28 de abril.

O debate foi na Atresmedia, do grupo que acaba de publicar um livro do primeiro-ministro. A campanha interminável começou, enfim, em 12 de abril, de sobressalto em sobressalto – e depois de quase cinco anos de pré-campanha –, e as histórias ganham velocidade. Sánchez se perfila sem rubor na direção do vazio deixado pelo PP e o Cidadãos no centro; o Podemos tenta tirar proveito do Watergate de Rajoy (uma polícia patriótica para esmagar o partido de Pablo Iglesias), e os demais estão em uma confusão geral em que o Vox define a agenda, que costuma irromper pela Catalunha.

"Sánchez não dá as caras porque tem que dar indultos em troca de assentos [do Parlamento]; se ele puder pactuará a independência com Torra", disse Pablo Casado (no dia 11), apesar do anúncio do debate, nesse labirinto em forma de teia de aranha que sempre conduz à Catalunha.

Mais informações
A esquerda cresce, mas ainda necessita de apoio para governar
Steve Bannon: “Bolsonaro e Salvini são os melhores representantes do movimento nacional-populista”
A nova ultradireita ganha força na Holanda

Entenda a crise que envolve as eleições gerais na Espanha

Pedro Sánchez foi nomeado pelo Parlamento espanhol como substituto do premiê conservador, Mariano Rajoy, do Partido Popular (PP), em junho de 2018. Na época, o líder socialista conseguiu reunir apoios de diferentes partidos de esquerda até então inimizados, e especialmente dos nacionalistas, inimigos históricos do PP, para uma moção de censura, que acabou por destituir o conservador. Porém, apenas oito meses e meio após assumir o cargo, Sánchez teve que convocar novas eleições por conta da rejeição dos independentistas catalães, os mesmos que foram cruciais para levá-lo ao poder, aos Orçamentos Gerais.

“Um Governo tem a obrigação de cumprir sua tarefa: aprovar leis, governar, avançar. Quando alguns partidos bloqueiam a tomada de decisões, é preciso convocar eleições”, declarou Sánchez na época no palácio de La Moncloa, sede do Poder Executivo em Madri, como conclusão de um longo discurso no qual criticou “a crispação” e defendeu o diálogo com os independentistas, “sempre dentro da Constituição”.

Porque esse era e é o tema de fundo: a Catalunha. Ao contrário do que acontece em outros países, aqui o inimigo não é externo: o PP de Casado e Aznar, o Cidadãos de Albert Rivera e certamente o Vox não hesitaram em se arranjar um bom inimigo – o separatismo – para polir sua estratégia. O julgamento dos líderes do procés está em marcha. Rajoy passou pelo Supremo. O Vox provocou brigas em Barcelona, os independentistas se manifestaram recentemente em Madri e no dia 11 Cayetana Álvarez de Toledo, do PP, foi vaiada na Universidade Autônoma de Barcelona. Não, a Espanha não é um país em chamas. Mas a política espanhola vai de incêndio em incêndio.

O Som e a Fúria: a Catalunha, e, finalmente, a Espanha, vivem em permanente estado de exaltação nacional, o que levou uma parte a cruzar todas as linhas vermelhas da desobediência e deslealdade institucional, e a outra a cair em uma espécie de fundamentalismo legal, na feliz expressão do escritor Jordi Gracia García. Um único dia é suficiente para forjar um drama em quatro atos: o líder da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), Oriol Junqueras, clamava pelo "diálogo"; ao mesmo tempo, seu partido e a antiga Convergência – Oh, Convergência – se recusavam a renunciar à via unilateral. Inés Arrimadas protagonizou o enésimo episódio de tensão, ao acusar os separatistas no Parlament de "se esquivarem dos ataques fascistas do independentismo nas sedes dos partidos constitucionalistas". E o indigno assédio a Álvarez de Toledo foi o toque final: o sétimo círculo da Divina Comédia é o dos violentos.

A pré-campanha teve início com um mistério (quanto vai custar ao PP abandonar o perfil de partido da ordem e da estabilidade?) e a campanha começou com outro enigma: Quão selvagem será o debate catalão. O PSOE se agarra ao perfil sem estridências de Sánchez, e por ora lhe cai bem. Mas a campanha pode se estraçalhar a qualquer momento: sempre acontece.

Passam-se os meses e o apoio ao separatismo não cede: se for para acreditar nas pesquisas (e as palavras condicionais costumam ser uma manobra de distração), o dia 28 de abril constatará a má saúde de ferro do secessionismo, com mais votos do que nunca nas eleições gerais. "Essa solidez não vai se desfazer enquanto durar o julgamento e os líderes continuarem na prisão: isso dá coesão ao separatismo e asas aos discursos incendiários do nacionalismo espanhol", argumenta o analista José Fernández-Albertos.

A política espanhola olhava para a Europa durante a Transição: o Estado do bem-estar social europeu era higiene, férias, anestesia, lâmpadas de leitura, laranjas no inverno. O movimento de independência tenta fazer algo semelhante. Os líderes catalães fizeram no dia 11 a enésima tentativa de aliar-se a Bruxelas, mas saíram escaldados: "Na Espanha os direitos democráticos são plenamente respeitados. Se a Catalunha tem um problema com a Constituição, tem o direito de lutar politicamente para mudá-la, mas não tem o direito de violá-la", retrucou o vice-presidente do bloco europeu, Frans Timmermans.

Os italianos não tiveram romance popular, mas tiveram a ópera: talvez por isso Berlusconi foi cantor de boleros e Matteo Salvini é uma espécie de guitarrista heavy metal. Começa a campanha e a política espanhola, apesar de sua tradição narrativa, se italianiza por alguns momentos e parece adequada à zarzuela. O libreto é dado pela questão catalã, transformada em tragicomédia com carácter circular e estrutura de pesadelo.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_