A comédia que rompeu com o conservadorismo nos EUA faz 60 anos
Livro revisita 'Quanto Mais Quente Melhor', de Billy Wilder, considerado uma comédia perfeita. O filme contou com Tony Curtis, Jack Lemmon e Marilyn Monroe.
Nunca tiveram um bom final, e decidiram manter o que estava escrito, que copiava o fecho de uma piada famosa na época. Aquele “Ninguém é perfeito” que Joe E. Brown responde a Jack Lemmon quando este lhe revela que não é uma mulher — como aparenta por seu disfarce de Dafne —, e sim um homem, Jerry, é o encerramento de uma comédia perfeita, Quanto Mais Quente Melhor, cuja estreia nos EUA completa 60 anos em 2019. Obra de um cineasta excepcional, Billy Wilder, que, como dizia sua esposa, tinha o cérebro cheio de navalhas de barbear. Wilder era rápido de língua, vivaz nos roteiros, e discípulo avantajado de Ernst Lubitsch. Desse coquetel surgiram alguns dos maiores filmes da história: Se Meu Apartamento Falasse, Crepúsculo dos Deuses, Sabrina, Farrapo Humano, Cupido Não Tem Bandeira, O Pecado Mora ao Lado...
Como conta no início do volume Joaquín Vallet, não há como entender Wilder sem Lubitsch, mas por outro lado chegou mais longe, incluindo muitos elementos políticos e sociais onde o primeiro jogava só com a sedução. Esse toque Lubitsch era algo que “Wilder tentou definir da seguinte maneira: ‘Não se pode dar tudo mastigado ao público, como se ele fosse tonto. Diferentemente de outros diretores que dizem que dois mais dois são quatro, Lubitsch diz dois mais dois... e isso é tudo. O público tira suas próprias conclusões.”
Wilder rodou Quanto Mais Quente Melhor no final dos anos cinquenta, depois de Testemunha de Acusação e antes de Se Me Apartamento Falasse. Ali começou sua parceria com Jack Lemmon, com quem faria outros seis filmes, e com o roteirista I. A. L. Diamond. Este e Wilder já tinham trabalhado juntos em Love in the Afternoon; depois, Wilder recorreu a outros autores em A Águia Solitária e Testemunha de Acusação, e voltou ao talento de Diamond em Quanto Mais Quente Melhor. Nunca mais se separaram.
A fonte de inspiração procedia do cinema, da comédia alemã Elas Somos Nós (1951), que por sua vez se baseava num filme francês, Fanfare d'Amour, de 1935. Em ambos os títulos os músicos protagonistas se disfarçavam por fome, e travestidos se envolviam com uma garota sexy. Wilder e Diamond venderam a ideia aos irmãos Mirisch — produtores forrados de dinheiro graças a seus investimentos nas balas e chocolates Hershey —, que aprovaram um orçamento num valor equivalente a 13 milhões de reais atuais, mesmo sem ter elenco definido. E um belo dia, em fevereiro de 1958, Wilder se aproximou da mesa que Jack Lemmon ocupava no restaurante Domick’s e lhe soltou: “Tenho uma ideia para um filme e eu gostaria que você participasse. Agora não tenho tempo, mas te digo do que se trata. São dois homens que fogem de uns gângsteres porque suas vidas correm perigo, se disfarçam com roupa de mulher e se unem a uma orquestra feminina”. Wilder e Diamond trocaram a fome pela morte, ou melhor, pela ameaça de serem assassinados, e por isso transferiram a ação para a Chicago de 1929, na matança do dia de São Valentim, da qual os dois protagonistas são testemunhas.
Segundo Tony Curtis, no elenco estavam ele, Frank Sinatra e Mirzy Gaynor como trio protagonista. Wilder custou a convencer os irmãos Mirisch de que Lemmon era a melhor opção depois da deserção de Sinatra, que nem sequer foi às reuniões marcadas com o cineasta. E quanto a Marilyn Monroe, entrou no projeto após recordar por carta ao diretor como havia sido feliz trabalhando em O Pecado Mora ao Lado. E Wilder deixava claro: “O papel de Sugar era o mais fraco, então o truque era que fosse interpretado pela atriz mais forte”. Monroe assinou contrato após ler um resumo e sem notar que o filme seria em preto e branco, quando em seus contratos exigia filmar em cores. O preto e branco foi usado para mascarar a maquiagem de Lemmon e Curtis. A atriz concordou, em troca de um salário de 200.000 dólares mais 10% da renda bruta.
Curtis recorda em suas memórias: “Billy nos enviou para o banheiro feminino do estúdio. Lá nos pusemos diante de um espelho para que nos retocassem a maquiagem enquanto as garotas entravam e saíam. Nós as cumprimentávamos e elas nos correspondiam com risos. Depois de um momento, sai a última, eu digo ‘Tchau!', e ela me olha e diz: 'Até logo, Tony'. Ainda morro de rir”. No dia seguinte, melhorada a maquiagem, nenhuma mulher os reconheceu, achando que eram figurantes de algum filme de época. “A ideia geral era que eu acentuasse um estilo Grace Kelly, e Jack... bom, Jack devia se aproximar de uma prostituta.”
A rodagem, que começou em 4 de agosto de 1958, foi um inferno por culpa de Marilyn Monroe. Para o plano em que bate a uma porta e diz: “Sou eu, Sugar”, foram necessárias 47 tomadas. Wilder chegou a lhe escrever a frase em uma lousa. Mas a lenda cresce no momento em que, no hotel, Sugar entra num quarto e, enquanto remexe suas gavetas, pergunta: “Onde está o bourbon?”. Quatro palavras. Começaram pela manhã, continuaram pela tarde e encheram as gavetas com letreiros com essa frase. Segundo algumas fontes, rodaram 59 tomadas; outras aumentam para 83. E, ainda assim, no filme Monroe está de costas, truque para acrescentar sua frase em pós-produção. Wilder contava isto sobre a atriz: “Tenho uma tia velha em Viena que estaria no set às seis da manhã todo dia, e seria capaz de recitar os diálogos inclusive de trás para frente... mas quem iria querer vê-la? De todo modo, enquanto todos na equipe esperávamos Marilyn, não perdíamos completamente o tempo. Inclusive pudemos adquirir cultura; eu, sem ir mais longe, tive a oportunidade de ler Guerra e Paz e Os Miseráveis”.
Em setembro, quando se transferiram ao Hotel Coronado, em San Diego, que recriava as paisagens externas de uma praia da Flórida, a coisa piorou. Ao séquito de Monroe, encabeçado por Paula Strasberg como consultora de interpretação, somou-se um ginecologista, Leon Krohn. A atriz estava grávida e tinha medo de voltar a perder o possível filho, como já havia lhe ocorrido em ocasiões anteriores. Por isso o dramaturgo Arthur Miller, seu marido, pediu a Wilder que a atriz trabalhasse só pelas manhãs. “Disse que estava muito esgotada para se submeter ao trabalho ao ar livre sob o sol da tarde. ‘Pela manhã? Se nunca aparece antes do meio-dia! Arthur, traga-me ela aqui às nove, e às onze e meia você pode levá-la embora!'. Trabalhávamos com uma bomba-relógio, somávamos 20 dias de atraso, e sabe Deus quanto do orçamento já tínhamos estourado [ao final esse estouro superou 500.000 dólares], e ela tomava um monte de comprimidos. Mas trabalhávamos com Monroe, e ela era uma loira platinada..., e não só pelo cabelo, nem por seu sucesso de bilheteria. O que você via na tela não tinha preço”, comentava o diretor.
Como exemplo da imensa inteligência de Wilder, na sequência em que Jerry conta a Joe que está namorando um milionário, o diretor deu maracas a Lemmon. Cada vez que diz uma piada, as toca como reflexo de sua felicidade. Na verdade, faz isso para que o público possa rir e não abafar a piada seguinte.
Marilyn perdeu o bebê em 16 de novembro e sua relação com Wilder se deteriorou. Por isso, nas fotos promocionais do filme, Jack Lemmon e Tony Curtis posam com uma loira que não é Monroe, mas Sandra Warner, uma das garotas da banda, cujo rosto foi mais tarde substituído pelo da protagonista. Mas Monroe participou da turnê promocional do filme em fevereiro e março, primeiro em Nova York e depois pelos Estados Unidos, e se comportou de maneira profissional. A turnê não passou pelo Kansas, onde o filme foi proibido por ter sido considerado “perigoso”.
Depois de bilheterias iniciais fracas, o filme ganhou uma incrível quantia de dinheiro. Quando saiu de cartaz quatro anos depois, tinha ultrapassado os 8 milhões de dólares. Com os lucros, Wilder aumentou sua coleção de arte com uma pintura e um desenho de Paul Klee, um quadro de Egon Schiele e outro de Braque. Como Teresa Llácer arremata no livro, “Some Like It Hot se revela como uma rachadura no muro conservador da dupla moral norte-americana sobre o sexo, o amor e o travestismo que rompeu grande parte dos preceitos da censura para acabar arrasando nas bilheterias e se tornando uma das melhores comédias da história do cinema”.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.