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Caso Marielle Franco
Coluna
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Marielle atemoriza porque representa tudo o que a estética bolsonarista combate e despreza

É sintomático que, por mais esforços que o novo Governo tenha feito para enterrar Marielle e deixá-la apodrecer no esquecimento, ela continuou ressuscitando

Boneca que representa Marielle em manifestação no Rio um ano após sua morte.
Boneca que representa Marielle em manifestação no Rio um ano após sua morte.Antonio Lacerda (EFE)
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Tem razão minha colega Flavia Marreiro quando escreve que “não é exagero dizer que o desfecho que formos capaz de dar ao caso Marielle será determinante para o futuro”. Por trás das sombras do martírio da jovem vereadora carioca, sacrificada a sangue frio, começa de fato a aparecer, a cada dia com maior clareza, que ela representava e representa tudo o que a estética bolsonarista combate e despreza.

Contra o mito de Bolsonaro que percorria o país semeando seu gesto de atirar com a mão — gesto que fez questão de ensinar a uma menina de cinco anos que estava no seu colo. Gesto que continuou fazendo na cama do hospital, vítima de um atentado contra sua pessoa. Contra as fobias de seus fiéis seguidores a tudo o que significava ser diferente, apareceu-lhes de repente o fantasma de alguém que era a síntese de seus medos. Uma mulher, jovem, bonita, saída da favela, independente, lésbica, casada com uma mulher, transbordando alegria de viver. Uma não corrupta, capaz de conceber a política sem manchar as mãos, constituía um perigo visível no antro dos caciques do Governo do Rio, que fizeram do Estado um curral pessoal e se gabavam de serem intocáveis.

É sintomático que, por mais esforços que o novo Governo de Bolsonaro tenha feito para enterrar Marielle e deixá-la apodrecer no esquecimento, ela continuou ressuscitando com maior força até chegar a se tornar a maior ameaça contra o novo ciclo autoritário e exclusivista, onde o que não leve seu selo não merece viver. E hoje, quando o núcleo bolsonarista mais avesso à modernidade e às diferenças começa a se estreitar, e muitos dos que haviam votado no seu mito se declaram desde insatisfeitos a enganados, Marielle se apresenta de novo viva e ameaçadora.

Quanto mais cal tentam jogar sobre sua tumba, mais viva e ameaçadora ela aparece. Vimos isso no Carnaval, onde ganhou louros que poucos meses atrás pareceriam impensáveis. E seu nome, depois de ter sido arrancada a primeira placa no Rio pelos que temiam que seguisse viva, reaparece agora nos muros de São Paulo, bem longe do Rio.

Ninguém é capaz, sem ser um néscio, de profetizar qual será o final do mítico e arcaico bolsonarismo, já que estamos a apenas três meses do início do seu governo. O que sim me dizem é que esta nova ressurreição do martírio da jovem Marielle, uma simples vereadora do Rio, está assustando mais que no dia em que a mataram.

A jovem negra da favela, que não só não escondia sua diferença de gênero como também a vivia com normalidade e acreditava que era possível fazer política a favor dos mais fracos sem manchar as mãos, tinha além disso algo difícil de entender na estética dos tuiteiros fanáticos do bolsonarismo puro: não tinha medo. Não precisava dormir com uma pistola debaixo do seu travesseiro. Sabia que sua vida tinha um preço, mas que igualmente valia a pena desfrutá-la.

Essa estética das armas que reluz nos peitos de tantos que gostariam de militarizar até as escolas, fazer do Brasil e dos brasileiros um exército de armados, é um Brasil forçado, que não responde à sua identidade. Não me crucifiquem, mas continuarei defendendo que os brasileiros não são medrosos. Eu gostaria de saber, por exemplo, se para os milhões de pobres deste país sua preocupação mais angustiante neste momento é poder dormir com uma arma aos pés de sua cama. Sem dúvida, seus problemas e desejos são bem diferentes.

Difícil entender, à luz da imagem cada vez mais viva e presente da valente Marielle, a confidência que acaba de fazer Jair Bolsonaro a um grupo de jornalistas. Disse-lhes que no Palácio da Alvorada, onde vive com sua família, “não consegue dormir tranquilo sem ter uma arma no quarto”. Se para conciliar o sono ele precisa de uma arma ao seu lado, num lugar que é já um bunker contra qualquer agressão, fica difícil imaginar como conseguem dormir os favelados expostos a todas as violências, aos tiros cruzados e balas perdidas.

Sim. Marielle — sua morte e o medo que continua despertando de que possa ressuscitar — é a antítese a toda essa liturgia e esses rituais bélicos, reais ou metafóricos, que estão sufocando as liberdades e a alegria de viver em paz dos brasileiros.

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