Elaine Caparroz: “Por favor, não me deixe morrer”
A tentativa de feminicídio da paisagista mostra que a sociedade começa a reagir para a gravidade da violência de gênero. Do segurança que bateu na porta à polícia que tratou o caso como feminicídio
O lutador de jiu-jítsu Vinicius Batista Serra, 27 anos, desvencilhou-se do corpo imóvel da paisagista Elaine Caparroz, 55 anos, porque acreditou que ela, naquela luta difícil e sangrenta, estivesse, por fim, derrotada e morta. O faixa-marrom de quase 1,90m, estudante de direito, levantou-se, vestiu a camisa quadriculada em azul e branco, dobrou os punhos e saiu do apartamento da mulher com quem estivera uma única vez. Imaginava deixar ileso o quarto e sala alugado por Elaine no gigantesco Torre Charles de Gaulle, condomínio que abriga 454 apartamentos na Avenida das Américas, uma das principais vias da Barra da Tijuca, zona Oeste do Rio de Janeiro. Vinícius encostou a porta do 1606 e desceu os 16 andares, abandonando o cenário de guerra com móveis e objetos quebrados, pedaços de pele e cabelos enroscados em vários pontos, paredes borradas de sangue de alto a baixo e poças no quarto, demonstrando que aquele havia sido o principal território do massacre. Embora o dia ainda não tivesse clareado, dava para ver, por volta das 4h30 da madrugada de sexta,16 de fevereiro, que sua camisa e também a calça jeans estavam respingadas de sangue.
“Foi você quem agrediu a dona Elaine?”, perguntou o segurança Jucilei de Sousa Andrade, 46 anos, já mandando o homem sentar com as mãos na cabeça—e Vinicius não teve escolha. Ao todo cinco funcionários da empresa terceirizada K-Paz, entre porteiros e seguranças do condomínio, apertaram-lhe o cerco na portaria. Jucilei havia ouvido gritos enquanto fazia uma ronda. Bateu na porta da paisagista, tocou a campainha, mas só ouviu uma ameaça: “Pode arrombar. Entra, você vai ver o que te acontece”. Então, ligou para a polícia. Ia voltar ao 16º andar, mas Vinicius apareceu no térreo. “Foi você?”, insistiu Jucilei. O homem confirmou sem hesitar que havia, sim, detonado Elaine. O porteiro Gilvan Lima, 58 anos, interfonou para um apartamento do 19º andar, onde vive Tatiane Viana, enfermeira, 35 anos, amiga íntima da paisagista. Desculpou-se por ligar àquela hora e pediu que fosse com ele ao apartamento de Elaine, que precisava dela com urgência.
Tatiane correu pelas escadas e se desesperou ao ver uma mulher engatinhando no corredor, nua, desfigurada, gritando: “Socorro, sou do 1606, sou do 1606”. Mesmo com a larga experiência no setor de emergência de um hospital público da capital, onde atende feridos a bala, vítimas de estupro, de trânsito e das atrocidades que decorrem de violência doméstica, a enfermeira entrou em pânico: “Nunca vi uma situação tão dramática, um corpo dilacerado daquela maneira, e perguntei: ‘Elaine, é você? O que fizeram com seu rosto?’” Passou a procurar na amiga feridas que tivessem sido feitas com lâmina. Imaginou um esfaqueamento, tamanha a quantidade de sangue que brotava dos olhos, dos ouvidos, da boca e das narinas. “Não encontrei buracos, mas vi sua dificuldade de respirar”. Então, Tatiane ergueu o tronco de Elaine, sentou-a para evitar que o bronco-aspirasse o líquido viscoso e vermelho, que acabou saindo no vômito, em longos jatos. Depois, deixou Elaine em decúbito lateral para evitar que voltasse a sufocar. Estava muito confusa, repetindo sem parar: “Socorro, sou do 1606”; “Por favor, não me deixa morrer”. Tatiane pensava: “Não terá mais jeito, o quadro parece o de um TCE (traumatismo craniano encefálico). E reviveu o filme de sempre: “O paciente fala, fala, fala. Quando o sangue esfria, a adrenalina baixa, ele entra em coma; não sai mais.”
O mata-leão
Vinicius é sedutor. Ganhou a confiança de Elaine nos meses em que trocaram mensagens, incluindo as de Whatsapp. Chegou por volta de 22h30, beijou sua boca, disse que a paisagista era ainda mais bonita do que nas fotos que vira no Instagram. Ajudou a cortar os queijos que ele mesmo pegou na geladeira e brindou com uma taça de vinho. Aí as tormentas começaram: “De repente, saí da realidade. A dimensão da sala mudou, senti uma sensação estranha no corpo, como se estivesse flutuando, perdendo o domínio das minhas ações. Veio uma vertigem e nada mais era real ali”, lembra Elaine, que acredita ter sido dopada. O lutador pediu para deitar no colo dela para verem um filme de terror, o que ela achou de mau gosto. Mas consentiu que se aninhasse no colo. Fez carinho no cabelo do homem e, depois, só lembra de estarem no quarto. Ele deitado na cama, de braços abertos, sem camisa, falando: “Deita aqui, pra gente dormir abraçadinho”. Elaine fechou os olhos e adormeceu. Não sabe dizer se foi abusada sexualmente.
Acordou no chão com os joelhos do cara sobre a sua barriga. Ele a segurava pelo pescoço, já batendo. A paisagista perguntou: “Por que está fazendo isso? O que eu te fiz? Sou uma pessoa do bem. O que você quer de mim? Dinheiro? Eu te dou dinheiro. Para com isso”. O agressor soltava gritos de guerra, acertava socos cada vez mais violentos. “Parecia o demônio”, diz. “Fui ficando apavorada, pedi socorro, berrei centenas de vezes bem alto o número do meu apartamento.” Quanto mais ajuda a paisagista pedia, mais nervoso ele ficava e embrutecia as pancadas. O sangue jorrava por todo lado, quando Elaine decidiu: “Vou morrer, mas não será fácil para ele”. Lembrou-se do filho, Rayron Gracie, 17 anos, que também é lutador de jiu-jítsu, e ensina que é preciso poupar a cara, o pescoço. Então coloquei os braços na frente do rosto para protegê-lo. “A mão fechada dele escorregava nos meus braços empapados de sangue, e Vinicius não conseguia acertar o alvo”, recorda. Virou um monstro ensandecido. Passou a disferir mordidas para tirar os braços dela da frente. “Mordia, gritava, tirava pedaços e cuspia a carne para o lado. Deu um soco tão forte, que achei que tinha levado meu olho para fora. Mandou mais um murro e quebrou o meu incisivo direito. Vi o dente voar. Eu estava perdendo a luta”, conta. “Assim que veio com a boca arreganhada para arrancar a maçã do meu rosto, enfiei a mão na boca de Vinicius. Ele mordeu com tanta raiva, que senti seus dentes entrarem até a metade dos meus dedos. Rasgados, três ficaram pendurados”.
Com os olhos inchados, as pálpebras meio coladas, Elaine já não enxergava mais. Percebeu, porém, que o homem veio por trás e a colocou sentada. “Ele me daria um mata-leão”. O golpe é aplicado quando o lutador está nas costas do adversário e, com o braço, envolve o pescoço dele. “Com a mão direita, agarrei o cabelo de Vinicius, e com a esquerda segurei firmemente o meu para não perder a posição. Ele não conseguiu atingir meu pescoço.” Como não pôde estrangular, abraçou Elaine por trás, e a espremeu sem parar. “A pressão era tanta que fui amolecendo, perdendo a energia... e apaguei. Em algum momento, voltei do desmaio e notei que não apanhava mais. Ficou um silêncio enorme no quarto. Só me dei conta do que aconteceu quando Tatiane me encontrou no corredor.”
Nos últimos 12 meses, 12.873 mulheres foram agredidas por dia; 536 por hora
A velha colher em briga de casal
Como louca, a enfermeira passou a bater nas portas dos apartamentos, pedindo ajuda para levar a amiga ao hospital. “Ninguém abriu. Eu só ouvia: ‘Calma, a polícia está vindo’. Ora, como alguém escuta um pedido de socorro e não se mobiliza?”, perguntava-se a enfermeira, soluçando. Ela ainda chora quando revive aquela agonia. A revolta dela ao ver uma pessoa amada naquela situação é natural e compreensível. Um olhar frio sobre o pavoroso caso, porém, pode levar à conclusão de que, embora muitos ainda hesitem em interferir ou ajudar, a sociedade começa a despertar para a gravidade do feminicídio no Brasil, o quinto país em matança de mulheres. “Há bem pouco tempo, imperava a máxima de que ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’. Não foi o que fez o segurança Jucilei”, reflete a socióloga Fátima Pacheco Jordão, fundadora do Instituto Patrícia Galvão, organização que atua na defesa dos direitos das mulheres. Ela ressalta também a importância dada ao fato pela mídia. “A maior parte dos grandes veículos de comunicação abriram ampla cobertura, não rotularam a vítima —como de costume— e nem julgaram o seu comportamento ao convidar um homem para ir à sua casa. Um direito dela”.
Mas o preconceito ainda pautou alguns veículos. Para atrair a audiência mais conservadora, a Rede Record pôs no ar a seguinte chamada da reportagem que viria no Domingo Espetacular: “O que leva uma mulher de 55 anos a procurar um homem mais jovem... e a dar intimidade?” A ruidosa crítica nas redes sociais levou a emissora a tratar o caso de maneira mais profissional em outra edição do programa. No Instagram de Elaine, a maior parte da caudalosa enxurrada de manifestações são de solidariedade, respeito e torcida para uma recuperação rápida. Os haters (odiadores) que crucificaram sua liberdade de mulher adulta se fizeram representar por um grupo numericamente insignificante.
A repercussão levou a polícia a uma atuação mais rápida e precisa. “Desde o primeiro momento, a delegacia distrital teve a sensibilidade de tratar a ocorrência como tentativa de homicídio em função de gênero, aplicando corretamente a lei”, afirma a major PM Claudia Moraes, especialista em gênero e direito, que até o ano passado atuou na elaboração do Dossiê Mulher, um compilado de dados e análises sobre a violência, a partir de registros das delegacias fluminenses, divulgado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro. “Não se tratou de um crime comum; teve uma especificidade: Elaine foi covardemente agredida por ser mulher; uma tentativa de feminicídio”, explica a major. Desde 2015 a lei define como feminicídio todo assassinato de mulher cometido em circunstâncias de violência doméstica e menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Em que pese a demora, a paisagista foi poupada, em parte, pela ação dos que estavam em volta. Moradores de prédios próximos ligaram para alertar a portaria do Torre Charles de Gaulle ou acionaram o 190, da PM. Alguns vizinhos do condomínio fizeram o mesmo, embora tivessem deixado Tatiane praticamente sozinha na assistência a Elaine. Só a advogada Denise, amiga de ambas, e ocupante de um apartamento no 13º andar, ajudou a arrastar a paisagista para a sala, onde foi vestida com um short de lycra e uma camiseta larga. “Não queríamos que os homens do resgate a vissem despida”, recorda Tatiane. Ao procurar a roupa nas gavetas da cômoda espatifada no chão, a enfermeira intuiu que Vinicius havia tentado atirar Elaine pela janela. “As principais marcas de sangue estavam nas paredes bem embaixo dela”, diz. “Aquele monstro só não a arremessou lá de cima porque Elaine é muito grande”. E forte também: a paisagista de 1,73m dedica duas horas diárias aos exercícios, faz ginástica localizada, spinning, musculação, pilates e ioga antes de começar a trabalhar.
Em 22 de julho passado, um caso parecido terminou com o corpo da advogada Tatiane Spitzner sendo arremessado pelo marido, Luís Felipe Manvailer, do 4º andar onde moravam em Guarapuava, no Paraná. Nessa história triste, a máxima da colher que não se mete em briga íntima ainda prevaleceu. “A impressão é a de que no prédio só existia aquele casal e as câmeras registrando as imagens para a gente ver depois”, observa a major Claudia. Ela se refere ao conteúdo exibido pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, em que se vê o homem batendo na mulher na garagem, depois esmurrando no elevador. “Aquelas pancadas não poderiam ter sido dadas sem barulho”, comenta. Violência doméstica produz quebradeira, xingamentos, gritos de raiva e de dor. “Não se trata de transferir responsabilidades, mas é preciso medir o peso da indiferença dos vizinhos e da sociedade. Ninguém quer fazer parte de uma ocorrência policial. Um pedido de socorro, porém, tem de ser levado a sério. Bater na porta ou ligar para a polícia pode salvar uma vida”, reforça a major.
Epidemia nacional
No Brasil estamos perdendo vidas preciosas todos os dias: 162 mulheres foram mortas entre o Réveillon de 2019 e aquele 16 de fevereiro —quando Vinícius quase destruiu Elaine. Os números macabros de mulheres vitimadas nos primeiros 47 dias do ano, que incluem 98 sobreviventes como a paisagista, abrem o artigo publicado pela magistrada Renata Gil, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e presidente da Associação dos Magistrados do estado. Ela escreve que a prática hedionda do feminicídio “já configura uma espécie de epidemia nacional”, que só pode ser combatida com “investigação policial competente e ação judicial célere, eficaz, punitiva”. O crime previsto no Código Penal, com pena de reclusão de 12 a 30 anos, em dezembro passado teve a pena aumentada em um terço. Isso se aplica quando o autor descumpre medidas protetivas descritas na Lei Maria da Penha ou desrespeita decisão judicial que suspenda a posse ou porte de armas.
O texto de Renata põe às claras a realidade do Rio, onde as condições de trabalho nas doze unidades da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) “são as piores possíveis”, com os agentes comprando até papel higiênico com dinheiro do próprio bolso. A magistrada lembra que a precariedade pode comprometer as investigações. Convenhamos, as más condições na polícia e na Justiça não são uma exclusividade do Rio de Janeiro. Ela continua: “É necessário que o inquérito policial chegue ao Ministério Público (MP) e aos tribunais com depoimentos incisivos, perícias variadas, descrição de comportamentos, narrativa do planejamento e ação do criminoso – em suma, provas robustas que permitam ao magistrado e/ou aos jurados dos tribunais do júri uma decisão segura, com pouca margem às contestações”.
Agressão planejada
Partiu do MP a conclusão de que Vinicius não só teve a intenção de matar Elaine como, de fato, acreditou ter conseguido liquidá-la. Por isso deixou seu apartamento. Lastreado nessa convicção, e no agravante de o lutador de jiu-jítsu ter agido de forma dissimulada, por marcar o encontro, o Ministério Público pediu a condenação dele —e o juiz titular Alexandre Abrahão Teixeira, da 3ª Vara Criminal, aceitou a denúncia. Depois de passar pela análise de psiquiatras que comprovaram o seu juízo mental, Vinícius, preso em flagrante, deve esperar o julgamento atrás das grades.
Elaine acredita completamente na tese do MP. “Ele planejou tudo”, diz. E esticou suas suspeitas para além. No depoimento à delegada Adriana Belém, titular da 16ª Delegacia Distrital (a Barra não tem uma Deam), puxou o fio de enredo ainda incerto: “Pode ter agido por vingança”. A paisagista começou a montar o quebra-cabeça diante da delegada, dando, primeiro, suas impressões sobre a premeditação.
É preciso conhecer um pouco de sua história para entender a desconfiança. Nos fins de semana, ela normalmente se junta a Tatiane e a outros amigos para uma pizza ou algumas taças de Pôr-do-sol, em um bar perto do Posto 5, na Barra. O drinque leva vodca, um naco de laranja desidratada e uma generosa espuma de cevada clara, que contrasta com o tom carmim de um ingrediente mantido em segredo pelo barman do lugar. Elaine adora. Dela, pode-se dizer que seja uma pessoa alegre, bem-resolvida, independente, que curte fazer uma comidinha, abrir um vinho, ouvir música.
Mas aquela sexta seria diferente. Esperava “o cara gentil” que se aproximou sete meses antes, no Instagram, atraído por sua foto abraçada com filho, Rayron, de quem Vinicius era seguidor. Então, Elaine trocou mensagens com Tatiane por volta de 22h para dizer que o conheceria pessoalmente. Combinaram que, saindo o rapaz, a paisagista iria ao apartamento da amiga —ou o contrário—para contar sobre o encontro. Vinicius insistiu em vê-la no apartamento, não em um bar, como ela sugeriu. Na portaria do Torre Charles de Gaulle mentiu ao porteiro, apresentando-se como Felipe, nome falso que ficou registrado na ficha de controle de visitantes. Na conversa com Elaine, comentou sobre um amigo que, cheio de cólera e insatisfação com um desafeto, pensava em matá-lo. “O que você acha disto?”, questionou o faixa-marrom. “Aquela pergunta me soou estranha”, recorda Elaine.
Onde mora a vingança?
“Não sei exatamente”, diz à reportagem, quando perguntada sobre que tipo de desforra procuraria Vinicius. A delegada Adriana não desconsidera a possibilidade de algo que envolva a família do filho da paisagista. Rayron é uma grande promessa do esporte. Desde os 12 anos mora em Nova York, treina disciplinadamente na academia do tio Renzo Gracie e, no ano passado, sagrou-se campeão mundial de faixa-azul juvenil. Seu pai, Ryan Gracie, era considerado uma lenda, um mito no mundo da luta, e morreu em 2007, aos 33 anos, na cela de uma delegacia de polícia de São Paulo, poucas horas após ser preso por tentar roubar três veículos numa desastrada tentativa de livrar-se de visões paranoicas. O primeiro laudo do Instituto Médico Legal atestou que Ryan sofreu uma parada cardiorrespiratória provocada por overdose de cocaína, acrescentando mais polêmica ao caso. O médico de Gracie foi condenado —e absolvido mais tarde— por aplicar um excesso de medicamentos na tentativa de controlá-lo na cadeia.
Elaine teve com Ryan um breve romance e Rayron nasceu. Ambos foram morar juntos para dividir os cuidados com o bebê. Logo se separaram, mas seguiram amigos. Rayron é da quarta geração do clã mais simbólico das artes marciais no país. No final da década de 1990, a família que criou o jiu-jítsu brasileiro (BJJ) inventou o Ultimate Fighting Championship (UFC), a competição que originou o campeonato de MMA, ou Artes Marciais Mistas. O pai de Rayron tornou-se um dos mais notáveis campeões da modalidade. Elaine Caparroz apenas desconfia que o atentado praticado por Vinicius, faixa-marrom de jiu-jítsu, possa, de fato, estar associado a este universo. “Mesmo assim, trata-se de feminicídio. Ele procurou vitimar uma mulher provavelmente por considerá-la mais vulnerável”, comenta a delegada Adriana. “Falando em tese: por que não teria buscado alguém da parte masculina da família para praticar sua vingança?”, completou a major Claudia.
Um difícil recomeço
Elaine sobreviveu sobretudo porque tem força física e mental. Na hora do brinde do Réveillon de 2019, no topo do prédio onde morava, suas amigas mentalizaram seus pedidos. Uma queria viajar, outra, passar no concurso público que persegue, alguém verbalizou que desejava um bebê. Elaine não pediu nada. “Tenho um filho maravilhoso, estou tranquila, me sinto plena”, disse. No dia seguinte, viu-se incomodada com um pressentimento estranho. Não soube explicar de onde vinha. Na véspera de ser barbaramente atacada, distraiu-se e fechou a porta do carro, prendendo o dedo. “A dor me fez pensar: ‘Acho que algo ruim vai me acontecer.”
Mais velha dos três filhos de um metalúrgico e uma dona de casa, nascida em São Caetano do Sul, no ABC paulista, foi modelo de passarela e publicidade, cursou administração e paisagismo, trabalhou como corretora de imóveis e teve um restaurante no bairro do Recreio, no Rio. Em 2017, já separada do segundo marido, decidiu ir para a Austrália, afinal o filho estava morando nos Estados Unidos desde os 12 anos. “Na época, isso deixou meu coração partido, mas permiti que Rayron fosse correr atrás do sonho”, relata. “Eu me vi livre, leve, completamente desimpedida”.
Há pouco mais de um ano, porém, voltou para o Brasil, por não conseguir o visto para permanecer fora por mais tempo. Considera-se espiritualizada, e, no retorno, andou prospectando um novo empreendimento para tocar, consultando sempre o seu interior. Estava em um ponto de virada na vida. “Sei que depois do trauma não serei a mesma pessoa. Tenho sintomas de síndrome do pânico, me recupero de problema renal, com a retina descolada, ossos da face fraturados, dores por todo lado, lábios costurados por 60 pontos. Pode ser que ainda precise passar por um tratamento psicológico e cirurgias de reparação do rosto.” Ricardo Cavalcante Ribeiro, o cirurgião da Casa de Portugal que a atendeu, comparou as agressões a um impacto frontal de um carro em alta velocidade, com Elaine no banco da frente, sem cinto de segurança. Mexeu com seu corpo todo. “Mas de uma coisa tenho certeza: quero estudar para entender melhor de violência contra a mulher”, afirma a paisagista. “Acho que o meu caso também ajudou a discutir o quanto a sociedade é preconceituosa e injusta. Por que uma mulher madura não poderia ter um encontro com um homem de 27 anos?”
Ela já começou o trilhar o caminho. Onze dias depois do atentado, esperou três horas para fazer um exame de corpo de delito no Instituto Médico Legal. Enquanto esteve ali, viu nove mulheres arrebentadas. “Por dia, 30 vítimas de agressões domésticas e abusos sexuais chegam nesse IML”, comenta. Há muito o que fazer. De acordo com uma projeção do Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicada em fevereiro e realizada sobre pesquisa do Instituto Datafolha, nos últimos 12 meses, 12.873 mulheres foram agredidas por dia; 536 por hora. Cresceu, de 61% para 76%, a taxa de conhecidos entre os agressores, significando que a violência se fez mais intensa no âmbito privado, dentro de casa. Um panorama mais completo sobre essa trágica realidade pode ser encontrado nos Dossiês do Instituto Patrícia Galvão. “E o IML não tem sequer cadeira decente para que as vítimas possam sentar”, comenta Elaine. “O lugar é sujo e faltam equipamentos para os exames. O médico apenas olhou os laudos que fiz no hospital onde fui internada. Que corpo de delito é este? O descaso com as mulheres, principalmente as mais pobres, tem de ser denunciado.” Na saída, Elaine contou o que viu aos repórteres que a aguardavam. Pautou a imprensa para futuras reportagens sobre mais um árido capítulo do sucateamento da saúde pública no Rio de Janeiro e no país. Já as matérias sobre o atentado que ela sofreu irão juntar-se às inúmeras histórias de vítimas da violência que assolam o cotidiano e entristecem todas as mulheres do Brasil.
(Esta reportagem foi realizada com apoio de um grupo de fundadoras do Instituto Patrícia Galvão)
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