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Unidos do Roçado, a escola de samba de agricultores que transformou o Carnaval no sertão do Ceará

Há 56 anos, agricultores da cidade de Várzea Alegre trocam as enxadas por instrumentos musicais para protagonizar o desfile da Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro (Esurd) no campo e na cidade

Várias gerações da comunidade do Roçado de Dentro ensaiam para o desfile do carnaval
Várias gerações da comunidade do Roçado de Dentro ensaiam para o desfile do carnavalYuri Lobato
Beatriz Jucá

Em um pequeno pavilhão às margens de uma estrada de terra batida, pelo menos três gerações de agricultores trocam as enxadas da lida diária por instrumentos musicais. Acostumados a amargar décadas de seca (e o medo da falta de alimento à mesa), eles agora erguem tambores e tamborins com energia, motivados pela plantação que neste ano de 2019 esverdeou.

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Na comunidade do Roçado de Dentro —na zona rural de Várzea Alegre, uma cidade de quase 40.000 habitantes no sertão do Ceará—, o bom inverno é o principal termômetro do Carnaval. Ali, há 56 anos, um grupo de agricultores deixa suas roças para levar até a zona urbana da cidade o desfile de uma escola de samba com mais de 300 integrantes e cuja trajetória transformou a cidade em polo carnavalesco. Da tradição iniciada pelos homens do campo, Várzea Alegre ganhou nos últimos anos outra escola de samba (Mocidade Independente do Sanharol) e uma série de blocos que todos os anos atraem centenas de pessoas ao município.

Esta história começa em 1963. Enquanto golpeava o solo para plantar legumes, o agricultor Pedro Souza cantava a marchinha de Emilinha Borba que ouvia repetidas vezes no único rádio de pilha do Roçado de Dentro. A voz saía ritmada ao tilintar da enxada: "Vem cá, seu guarda / Bota pra fora esse moço / Que tá no salão brincando / Com pó de mico no bolso / Foi ele / Foi ele sim / Foi ele quem jogou o pó em mim". Os companheiros agricultores, de tanto ouvi-lo cantar o , aprendiam a letra e, mesmo sem portar os instrumentos necessários, reproduziam a música na roça. Era Pedro Souza, acostumado a tocar sanfona nas festas populares da comunidade, quem conduzia aquela orquestra improvisada, nascida imersa a um matagal de mudas de feijão e milho. Um ditava o tom, os outros o seguiam em coro. Valia ainda imitar, com a boca, o som do trombone, da sanfona e da corneta, enquanto o do surdo e o da caixa ficavam por conta de um batuque ritmado em um pedaço de madeira ou na própria coxa.

Em mais uma tarde como esta, em fevereiro de 1963, os agricultores do Roçado largaram as enxadas, pegaram instrumentos emprestados da banda cabaçal da comunidade, um conjunto musical típico do interior cearense, e decidiram entrar em cena para enfrentar uma espécie de abismo social que naquela época separava as zonas urbana e rural. Iluminados pelo sol a pino do meio-dia e usando galhos de plantas como alegoria, saíram animados pelas estradas do sítio, tocando e convidando os demais moradores para a empreitada. “A minha sanfona era novinha, e a princípio eu nem queria colocá-la no meio daquele negócio”, conta Matias Alves de Souza, sem saber direito se os amigos pegaram primeiro o braço dele ou a alça da concertina. Sem ter como fugir daquela intimação, o jeito foi seguir com os companheiros rumo à cidade. No percurso de dois quilômetros que separam a comunidade da zona urbana, vários momentos de hesitação. Com medo de serem ridicularizados na cidade, os agricultores tentaram esconder o rosto com carvão e goma —uma forma de não serem reconhecidos.

Agricultores do Roçado simulam o primeiro desfile do bloco, que aconteceu em 1963
Agricultores do Roçado simulam o primeiro desfile do bloco, que aconteceu em 1963Yuri Lobato

Dezenove homens acompanhavam o desfile. Tocavam frevo e dançavam, enquanto o agricultor Vicente Santiago servia de olheiro. Ele desfilava dez metros à frente do grupo para estudar previamente o caminho. Conduzia os agricultores prestando mais atenção na reação dos espectadores do que no som dos companheiros. Se, por ventura, ouvisse um comentário desgostoso, já mudava a rota. Os outros nem percebiam o mau agouro. Assim o grupo adentrou a cidade e seguiu rumo ao centro. Das sacadas das casas, a população demonstrava empatia. “Quando entramos na cidade, foi bom demais. Era todo mundo gostando, da criança até o idoso. As mulheres saíam pra olhar o desfile e deixavam o arroz queimar. Doutor, era um negócio de impressionar mesmo”, contou muitas vezes Pedro Souza na comunidade, ao lembrar daquele dia.

No dia seguinte, um convite da cidade

Na manhã seguinte ao do primeiro desfile, os agricultores do Roçado de Dentro acordaram cedo para ordenhar as vacas. Do curral, partiram para as roças, satisfeitos pelo bom inverno e pelo Carnaval. Era mais um dia comum, até que um dos componentes do bloco gritou aos companheiros: "Vamos nos preparar que os homens da cidade convidaram a gente pra desfilar novamente!". O segundo desfile, naquele mesmo ano, já contava com mais de 24 instrumentos que haviam sido emprestados por uma escola municipal da cidade. Além das sanfonas, das flautas e dos chocalhos utilizados no primeiro dia, o Bloco dos Sujos —como ficou conhecido— desfilava agora com bumbos, caixas, surdos, pandeiros e tambores.

Mestre Joviano comanda a bateria da Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro
Mestre Joviano comanda a bateria da Escola de Samba Unidos do Roçado de DentroYuri Lobato

E desde então não parou. Nos carnavais seguintes, muitos elementos das escolas de samba do eixo Rio – São Paulo foram incorporados pelos agricultores, especialmente quando passaram a ter acesso à televisão. A escola foi ganhando cada vez mais adeptos, samba-enredo, alas e muitas fantasias. Este ano sairá com pelo menos 300 integrantes, distribuídos em oito alas e um carro alegórico. Os integrantes, que agora já contam também com as pessoas da cidade, só consideram cancelar o tradicional desfile nos anos em que a seca aperta —e os recursos ficam ainda mais escassos. Mesmo nestes anos, pelo menos a bateria sai. E é questão de respeito às raízes refazer sempre o trajeto do sítio à cidade. É que não é a estética, e sim a sonoridade, que move os agricultores do Roçado.

O som é a síntese da comunidade. Através do ouvido, os 120 habitantes de lá se comunicam com o mundo: o trovão antecipa o tamanho da chuva, o farfalhar das plantas indica se o legume segurou, o piado alto do pássaro anuncia mau presságio, o barulho do motor da moto ou do carro avisa quem está de passagem pelo sítio e por aí vai. Sob o sol escaldante, para cumprir uma obrigação que não tem nada de extraordinário, o agricultor do Roçado canta, tira som das ferramentas do campo e vai ensinando música aos descendentes sem nem perceber que virou mestre.

Assim, ao longo de décadas, eles vêm exercitando as batidas, treinando o ouvido e descobrindo os mais diferentes ritmos. Criaram conjuntos de forró, blocos de frevo e uma escola de samba que, embora atrelada a um modelo vendido pelos meios de comunicação de massa, é a responsável por preservar as tradições populares da região. Apresentações de reisado, maneiro pau e outras manifestações populares são realizadas ao longo do ano para angariar os recursos que bancarão as alegorias do desfile do Carnaval. 

No Roçado de Dentro, não se escolhe ser nem músico nem agricultor. Lá, não se recebe formação técnica para plantar ou compor. As novas gerações aprendem o manejo dos instrumentos —do campo e da música— de tanto verem o pai e o avô enterrarem semente e fazerem tocada em calçada para comemorar a boa colheita. “Agora, aprende é isolado aqui mesmo. Os que vão embora do sítio não tocam como os que ficam aqui não”, diz Francisco Alexandre de Menezes, o Chiquinho. Com mais de 80 anos, ele é um dos fundadores da escola e guardião das memórias daquele tempo. Chiquinho se recusa a tirar som na calçada porque reprodução de lembrança, se for muito igual, dói. E também porque não quer correr o risco de desafinar por causa do fôlego amiudado pela velhice. Ele é do tipo que tira som de cuíca com couro rasgado e magoa o espinhaço plantando milho, mas não faz mais tocada em calçada porque chora. Prefere deixar que as cantorias do Roçado de Dentro ganhem forma na imaginação dos espectadores da escola de samba e dos ouvintes de suas histórias. Enquanto isso, os mais jovens saem pelas ruas, mantendo a tradição neste próximo domingo.

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