18 fotosDa roça ao sambódromoÚnica escola de samba criada por agricultores no país impulsiona o carnaval de uma pequena cidade no sertão cearense São Paulo - 02 mar. 2019 - 08:33BRTWhatsappFacebookTwitterBlueskyLinkedinLink de cópiaO agricultor não esquece de quem é porque carrega na pele uma vida gravada pela seca. São marcas que foram deixadas pelo tempo para lembrá-lo que a paisagem pode não se esverdear e algumas vezes os legumes não conseguem se desenvolver na terra. É preciso conviver com o medo de faltar alimento à mesa, por isso a seca marca mais os rostos do que as terras. Caleja. O agricultor, diz Chiquinho Menezes (foto), não acha que rachadura nos pés ou massa dura em bucho de encostar moedor de milho valham alguma coisa. Ele não ignora as marcas que a vida lhe imprimiu no corpo, mas se recusa a ser limitado por elas. Também não reclama da vida porque aprendeu cedo a se conformar. O sofrimento não define a vida rural, embora seja verdade que a alegria no campo está sempre dependendo de uma variável chamada água e por isso dura pouco mais que o tempo da chuva.Beatriz JucáQuando a seca dá uma trégua, a música se espalha pelas ruelas do Roçado de Dentro. Chiquinho Menezes manteve durante muitos anos um armazém que conta visualmente história da comunidade, cujos pilares reúnem trabalho, alimento e música. É uma espécie de museu vivo, que reúne de instrumentos musicais à produção do campo. Ali, está a cuíca usada no primeiro desfile da escola de samba. Uma sacola cheia de fantasias de carnaval divide uma prateleira com várias garrafas de feijão e cuias de milho. A sanfona que embalou tantas festas de domingo repousa há décadas sobre um armário, ao lado de enxadas e celas de cavalo. Chiquinho é daqueles que não consegue lembrar o número do próprio RG porque esteve sempre mais preocupado em juntar as peças de um retrato coletivo do que comprovar sua existência oficial. Acabou por conseguir desenhar, no seu pequeno armazém, um perfil da comunidade natal.Beatriz JucáRaimunda Alves de Menezes tem olhos de seca, por isso se emociona quando fala de comida. Por isso chora, ao lembrar dos tempos de seca, quando o irmão Tim almoçava chorando, depois do exaustivo trabalho na roça. As mulheres da família passavam as manhãs pilando milho para fazer o pão, única comida à mesa, e, solidárias ao esforço diário e de pouco retorno do irmão, davam um jeito de conseguir uma rapadura por semana para amenizar o sofrimento dele. “Pra ele tinha que ter essa rapadurinha rapada. Pra nós não tinha, porque se fosse comer tudim, o doce num instante se acabava. Mas toda vida foi assim: pro agricultor tem ano que é ruim mesmo, que o legume não segura aqui”, lembra.Beatriz JucáNo Roçado, o vizinho geralmente é também parente. Acontece que o povoamento do lugar ficou por conta do nascimento de oito a dez filhos para cada casal formado entre as famílias Souza e Menezes. Foi tanto primo casando com prima que é difícil encontrar duas pessoas no Roçado que tenham um único parentesco. Eles costumam dizer que são "quase doidos" porque há casos em que o pai é também primo do próprio filho. A intricada árvore genealógica acabou ganhando o imaginário popular local e virando causo. Conta-se ali que, um dia, perguntaram a um morador do Roçado: "Quer dizer que você é parente de todo mundo?". E ele respondeu: "É. Eu sou primo até do meu pai”. Na imagem, Antonito Meneses, já falecido, que costumava cantar os causos da comunidade em versos.Yuri LobatoA vida no Roçado é compartilhada diariamente. Na ausência de praças ou pontos de encontros no sítio, as próprias casas viram espaço de sociabilidade: as portas sempre abertas atraindo visitas sem a necessidade de um convite. Nas calçadas das casas isoladas (elas não ficam exatamente uma ao lado da outra como é comum nas ruas da cidade), sempre chega o compadre para uma conversa, o menino querendo um biscoito, o trabalhador pedindo um copo de água. É este o palco para contar as histórias do passado.Beatriz JucáComemorando a boa safra do inverno de 1963, os agricultores saíram pelas estradas de terra batida do Roçado de Dentro com chapéus, roupas estampadas e plantas como alegoria. Com medo de serem repreendidos pelos moradores da cidade, pintaram o rosto com o que tinham à mão: carvão e goma. “O negócio do carvão era pra isso mesmo: ficar mais feio do que era, perder a vergonha, se esconder”, conta Lázaro Menezes. Na imagem, feita há dez anos, ele remonta a "fantasia" que o grupo de agricultores usou no primeiro desfile. Ao contrário do que esperavam, os músicos da roça foram ovacionados pelos moradores da zona urbana.Yuri LobatoA boa resposta da cidade em relação ao bloco dos agricultores os levou a organizar um desfile no ano seguinte já tentando se converter em uma escola de samba. Em 1964, ano do golpe militar no Brasil, eles conseguiram fardas e quepes utilizados nos desfiles de 7 de setembro pelas escolas municipais e as usaram como fantasia. Saíram mais uma vez do campo à cidade, fardados e repletos de instrumentos musicais. A bateria da escola já estava consolidada.Arquivo PessoalNo primeiro desfile, os agricultores tinham receio em mostrar o rosto à Sociedade da zona urbana de Várzea Alegre. Assim mesmo, com a inicial maiúscula. Dita como substantivo próprio, a palavra desenhava um corpo ao qual os agricultores do Roçado sentiam não pertencer.“Carnaval só tinha lá pra Sociedade. Só eles que brincavam. Não era como hoje que tem carnaval em Várzea Alegre pra quem quiser. Foi o Roçado de Dentro, com o bloco, que fez essa criatividade de carnaval pra todo mundo”, resume Maria Socorro Alves de Menezes.Beatriz JucáAo longo dos anos, cada vez mais agricultores do Roçado passaram a incorporar a bateria, que hoje conta com dezenas de integrantes e com instrumentos musicais próprios. Um homem foi fundamental neste processo de consolidação do grupo: Mestre Tim. O agricultor é o grande símbolo da bateria do Roçado. Nos anos mais duros de seca, quando os companheiros queriam desistir do carnaval, era ele quem tentava estimular. Antes de morrer de câncer, pediu aos filhos e demais familiares da comunidade: "Não deixem a peteca cair". A frase ecoa na memória e nas faixas colocadas na sede da escola. Ainda hoje, vem dele o maior estímulo para o desfile.Yuri LobatoO último samba-enredo que Pedro Souza, principal fundador do bloco, criou representa o espírito da bateria e homenageia Mestre Tim: "Ôôôôôô / Eu sou Esurd, com muito amor / Com muito amor / Pra mostrar o seu valor / Ao povo varonil / No ano dois mil / A Esurd vai desfilar pra valer / Esurd, Esurd, Esurd, um passado a reviver / Esurd, Esurd, Esurd, te amarei até morrer / Te amarei até morrer / Por que você também pertence a mim / Sou a sua história, junto ao cavaco e ao tamborim / E quanta saudade do apito do Mestre Tim".Yuri LobatoA maioria dos integrantes da bateria da Esurd começa na escola ainda criança. Criados nos arredores da sede da escola, estão sempre ali brincando com tamborins nas festas de domingo, nas apresentações de maneiro pau ou nos reisados. Vão carregados pelos pais, também músicos da escola, e criam laços. Enquanto crescem, vão evoluindo também na responsabilidade dentro da escola com os instrumentos que tocam. Começam com os tamborins e vão progredindo a repiques, surdos e tambores. “A Esurd pra mim é tudo. É ela que está me destravando e que leva o nosso nome lá fora”, diz Valdir Alves de Menezes, filho de Mestre Tim. Ele tem 45 anos, 33 deles na bateria. “Eu praticamente morava dentro da sede e ainda com o maestro do samba, então não tinha nem como não aprender a tocar e a amar isso aqui”.Yuri LobatoBatizada como Pavilhão Mestre Tim, a sede da Esurd foi construída no fim da década de 1990 pelos próprios agricultores, que realizaram uma série de apresentações de teatro, reisado e maneiro pau para conseguir o dinheiro do material de construção. Hoje o local serve como escola de samba, centro cultural, salão de festas e até quadra poliesportiva para a comunidade. Yuri LobatoA base da bateria é responsabilidade principalmente das crianças da comunidade. Os adultos portam os instrumentos mais pesados, como surdos e caixas. Na primeira parte do desfile, que acontece no próprio sítio, o som é o principal protagonista. Sem o acompanhamento de alas ou carros alegóricos, apenas a bateria impera. Começa uma apresentação na sede e logo sai pelas estradas de terra batida, um espetáculo especial aos mais velhos da comunidade, que assistem de suas calçadas por conta das limitações para acompanhar o desfile na cidade.Yuri LobatoDiante de um público cada vez mais exigente e antenado aos meios de comunicação de massa, a Esurd tentava se equilibrar entre a tradição e a moda. Mestre Tim - e depois os outros mestres de bateria que o sucederam - prestavam atenção no som das escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo para desenvolver o próprio tom. As fantasias começavam a ser mais bem planejadas, sempre levando em conta o amarelo e preto que se tornaram as cores oficiais da escola.Yuri LobatoAos poucos, novas alas começaram a ser criadas: comissão de frente, baianas, velha guarda, crianças, papa angus. Em reuniões feitas ao longo do ano, os moradores decidem juntos o tema do desfile. A partir daí, são pensadas as alas e as fantasias, enquanto Nonato Sousa (filho do mestre Pedro Souza) se ocupa do samba-enredo e da qualidade do som que acompanhará o cortejo. Um papel que herdou do pai, fundador da escola.Yuri LobatoA maioria das mulheres que integram a ala das baianas da Esurd nunca foi à Bahia ou à África, os mais antigos berços da tradição, mas todas se preocupam em rodopiar, uma referência de adoração a Olorum, o senhor dos espaços durante o desfile no sertão do Ceará. As baianas, geralmente mães e avós dos agricultores sambistas, trazem amor e conhecimento embevecidos no turbante.Yuri LobatoAtualmente a Esurd conta com pelo menos 300 pessoas, distribuídas em oito alas e também em um carro alegórico, uma conquista dos organizadores nos últimos cinco anos. A cada carnaval, as fantasias e alegorias do anterior são recicladas para criar um desfile completamente novo. Hoje, o grupo incorpora pessoas do campo e da cidade, movidos pelo exemplo e pela saudade dos primeiros mestres da Esurd. “Quando eu comecei a entender o que era ser gente, a Esurd já existia. Eu comecei a gostar, desde muito cedo, dessa escola porque ela tem essa habilidade incrível de resgatar as coisas”, explica Vicente Menezes, que presidiu a escola em 2011.Yuri LobatoNuma época em que ninguém esperava que matuto fizesse carnaval, mas eles ousaram e, na ânsia de serem aceitos, desenvolveram um processo cultural que acabou por remodelar a identidade de toda a cidade. Inspiraram a criação de uma nova escola de samba na cidade, chamada Mocidade Independente do Sanharol, e uma série de blocos. Ajudaram a transformar Várzea Alegre em um polo carnavalesco no meio do sertão cearense. Mas o que a escola ensinou vai além. A Antônio de Souza Neto, componente mais antigo da bateria, ensinou o que é a emoção. “Eu sei o que é emoção porque o cabra que sai na bateria sente, e eu já tenho mais de 40 anos de Esurd. Eu sinto quando pego o instrumento e lembro que foi meu pai (Antonito) quem ajudou a fazer o movimento. Eu desfilo porque acho bom mesmo, nasci dentro da escola e não sei se um dia vou sair não. É que nem o samba que Nonato de tio Pedro fez e diz assim: ‘Orgulho de uma grande tradição, de uma gente tão humilde, que sabe o que é emoção’. A gente sabe”.Yuri Lobato