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Com Mourão à frente, Governo Bolsonaro é cada vez mais tutelado por militares

Vice-presidente vai à Colômbia tratar de Venezuela, e faz contraponto a Ernesto Araújo. Para historiador, maior presença de oficiais deixa limite entre Governo e Forças Armadas difuso aos olhos da sociedade

Os militares definitivamente voltaram para as principais manchetes dos jornais, que não raro informam sobre como os oficiais que compõem o Governo Jair Bolsonaro se articulam nos bastidores para mediar conflitos, apagar incêndios, aconselhar o presidente e expressar discordância com a postura beligerante de seus filhos. Eles vêm ocupando cada vez mais espaço no Executivo Federal, influenciando e até tutelando o governo em áreas como a de política externa, conforme evidenciou a ida do vice-presidente, o general da reserva Hamilton Mourão, para a reunião do Grupo de Lima em Bogotá para discutir a crise na Venezuela. Além de Mourão, se destaca como homem forte do Governo o general da reserva Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e uma espécie de conselheiro e guru de Bolsonaro.“O Brasil não fará nenhuma ação agressiva contra a Venezuela”, garantiu Heleno nesta manhã, contando que o Governo Bolsonaro criou um gabinete de crise para lidar com a ajuda humanitária que está chegando à fronteira.

Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão, em Brasília, no dia 13 de fevereiro
Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão, em Brasília, no dia 13 de fevereiroHANDOUT (REUTERS)
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Heleno seguiu a mesma linha das colocações de Mourão, mostrando o protagonismo de ambos para falar do conflito que alarma os brasileiros desde o fechamento da fronteira, determinada por Nicolás Maduro, nesta sexta. A ida do vice-presidente a Bogotá vem sendo interpretada como mais um sinal de que os militares estão cautelosos com relação ao ministro Ernesto Araújo. O chanceler assinou um documento do Grupo de Lima que prevê a suspensão da cooperação militar com o regime de Nicolás Maduro, mas não teria consultado os militares, segundo informou a Folha de S. Paulo. Isso teria desagradado o setor de inteligência do Exército, que se mantém informado sobre o Governo chavista a partir de seus contatos com os militares venezuelanos. Coube a Augusto Heleno e outros militares do Governo mediar o conflito com a corporação.

Os militares, com Mourão à frente, vêm tentando fazer um contraponto ao antiglobalismo de Araújo, ligado ao guru da extrema direita Olavo de Carvalho, com quem o vice-presidente já teve desavenças públicas. Apesar de ser o principal investidor externo e parceiro comercial do Brasil, a China já foi alvo de fortes críticas tanto de Bolsonaro quanto de Araújo, que já indicou querer se aproximar incondicionalmente dos Estados Unidos e isolar o país asiático, inclusive dos BRICS. Mais pragmático, o vice-presidente vem apaziguando as declarações e, nesta semana, anunciou em seu perfil do Twitter ter ficado responsável pela coordenação das comissões bilaterais com China, Rússia e Nigéria. Outra promessa de campanha que os militares vem agindo para postergar é uma possível mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Mourão chegou a receber representantes da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira e o embaixador palestino para, mais uma vez, apaziguar os temores. A mudança poderia gerar retaliação dos países árabes que importam produtos brasileiros, principalmente o frango Halal, além de colocar o Brasil na rota do terrorismo internacional.

Além de Mourão, que busca ter uma voz própria na vice-presidência, já são cerca de 50 militares ocupando o primeiro e segundo escalão. O último a integrar o time do Governo foi o general da reserva Floriano Peixoto Neto, que substituiu Gustavo Bebianno na Secretaria-Geral da Presidência da República nesta semana. A crise envolvendo Carlos e Jair Bolsonaro, que chamaram Bebianno de mentiroso nas redes sociais, também acabou envolvendo os militares, que tentarem interceder a favor do ex-ministro. Ao ficar claro que não havia maneira de retomar a normalidade, conseguiram emplacar o Peixoto Neto no posto. Ele foi chefe de operações das Forças de Paz da ONU no Haiti, na época comandada por Heleno, o principal patrocinador de sua recém nomeação.

Além de Heleno e Peixoto Neto, também fazem parte da equipe ministerial o outros seis militares: o general Fernando Azevedo e Silva (Defesa), o general Carlos Alberto dos Santos Cruz (Secretaria de Governo), o tenente-coronel Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), o almirante Bento Costa Lima (Minas e Energia), o capitão da reserva Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) e o capitão da reserva Tarcísio Freitas (Infraestrutura). Com a saída de Bebianno, o único civil que despacha do palácio do Planalto é Onyx Lorenzoni, ministro da Casa Civil.

"Existe uma diferença entre militares que participam do governo e governo dos militares. Um governo dos militares significaria que a instituição militar estaria governando. Não é esse o caso, são militares convidados como indivíduos", alerta o cientista político Eurico de Lima Figueiredo, diretor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF). O historiador Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concorda que não se trata de uma "militarização do Governo". Contudo, a relevância que os militares vêm ganhando reflete "a falta de quadros no entorno de Bolsonaro", uma vez que o presidente chegou ao poder sem "projeto ou plano" e não conta com "um partido que tenha um instituto de reflexão sobre os problemas do país". Essa direita "xucra e despreparada", explica o historiador, "depende dos militares porque são o grupo conservador mais bem preparado, apesar de possuir uma visão muito limitada da realidade pela perspectiva militar".

Para ambos os especialistas, o risco é que Bolsonaro acabe sendo cada vez mais tutelado por esses membros oriundos do meio militar. E que a fronteira entre Governo e as Forças Armadas seja cada vez mais difusa aos olhos da sociedade. "O senso comum não faz essa distinção entre Forças Armadas e membros militares no Governo. E muitos eleitores do Bolsonaro acham que esses personagens vão resolver todos os problemas, o que é uma perspectiva muito preocupante", opina Fico. O resultado, acrescenta, é uma mistura de "inexperiência e autoritarismo".

O cientista político Figueiredo enxerga Mourão e Heleno como as duas figuras mais fortes do Governo, responsáveis pela nomeação dos demais militares. "Essa presença faz com que a forma de mundo dos militares esteja no governo. E isso é ruim para a instituição militar, porque liga o destino do governo ao destino da própria corporação. Se der certo, há uma legitimação. E se não ocorrer? Como é que fica?", questiona.

Ele também opina que a fronteira entre a corporação e o Governo vai ficando "perigosamente fluida", algo que, ele insiste, é ruim para as próprias Forças Armadas. "Vejo a possibilidade de uma osmose perigosa, de uma absorção dos militares pelo governo. (...) Quando temos generais fazendo parte da conversa dos cidadãos, algo não está certo", acrescenta. O especialista acredita, contudo, esse cenário não represente o interesse das próprias corporações militares, uma vez que isso cria "o perigo da partidarização e da luta interna" dentro das Forças Armadas. "E os militares querem principalmente o fundamental, que é a manutenção da hierarquia, sem o que eles deixam de existir como instituição", explica Figueiredo.

Que militares ocupem essas áreas significa levar todo um know-how técnico adquirido em academias e instituições militares, algumas delas conhecidas pela opinião pública por sua excelência, como o Instituto Militar de Engenharia (IME) e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). "Possuem personalidades muito marcadas pelo ethos militar, e é impossível que abandonem essa perspectiva. O que se coloca é uma série de propostas de viés muito autoritário. Inclusive em campos que não são próprios das carreiras militares", argumenta o historiador Fico.

Mas a influência deles não se limita a esse círculo de ministros próximos a Bolsonaro e se estende a diversas áreas que não necessariamente são comandadas por eles diretamente. No ministério da Justiça de Sergio Moro, por exemplo, o general Guilherme Teophilo é o responsável pela área de segurança pública. Na área do Meio Ambiente do ministro Ricardo Salles (NOVO), ao menos 20 superintendentes estaduais do Ibama serão substituídos por militares, segundo informou a coluna de Eliane Cantanhêde no Estado de S. Paulo. “Não se pode brincar com isso, os superintendentes é que concedem licenças e alvarás e eu não sou obrigado a conhecer gente confiável em todos os Estados, no Amapá, no Acre, em tantos lugares em que nunca fui”, disse Salles. A própria escolha do ministro teve de passar pelo crivo dos militares ligados a Bolsonaro.

Com a falta mão de obra no serviço público, mas também dinheiro para abrir novos concursos e remunerar novos servidores, o Governo também prepara uma mudança legislativa para que militares da reserva possam ser aproveitados em atividades civis de órgãos públicos. Assim, além de uma pensão de reservista, receberiam uma gratificação ou abono, segundo noticiou o Estado de S. Paulo. A medida, presente em uma minuta da Reforma da Previdência à qual o jornal teve acesso, inundaria o serviço público de militares reservistas, que hoje só podem exercer funções militares ou cargos de confiança. O Governo Bolsonaro ainda não apresentou um projeto de reforma da previdência dos militares, que representam uma importante fatia das despesas do país. A promessa é que um plano será enviado ao Congresso em um mês, durante as discussões das mudanças na aposentadoria dos civis.

Os tentáculos se estendem também à área de Educação. Durante a campanha, o general Aléssio Ribeiro Souto foi um dos responsáveis pelas diretrizes para as políticas do setor e chegou a dizer em uma entrevista que "os livros de história que não dizem a verdade [sobre o golpe militar] devem ser eliminados". Os militares não conseguiram emplacar um ministro militar para a pasta de Educação, mas o ministro Ricardo Vélez, ligado a Olavo de Carvalho, já prometeu a volta da disciplina de moral e cívica, predominante na época da ditadura militar. "No dia 31 de março haverá divulgação de filme defendendo o golpe. E o ministro vai fazer propostas nesse sentido com material didático", aposta Fico.

Além disso, Bolsonaro sempre explicitou que sua referência na área eram as escolas militares, tanto por sua reconhecida excelência como pela disciplina. "É uma perspectiva ingênua e equivocada achar que as escolas militares têm melhor desempenho por causa da presença de militares ou aquelas bobagens cívicas de ordem, cantar hino e hastear bandeira", explica Fico. "Esquecem de verificar que gastam muito mais, têm recursos, instalações, equipamento, material didático, professor com dedicação exclusiva, bons salário, diretores que não são indicação política.... E o Brasil obviamente não tem condições de financiar uma estrutura dessa em escala nacional".

Seja como for, o novo paradigma já começa a se disseminar. No Distrito Federal, o governador Ibaneis Rocha anunciou no mês passado um convênio entre as pastas de Educação e Segurança para transformar quatro escolas estaduais em militares. A ideia é expandir o modelo para outros 36 centros de ensino até o fim do ano e criar uma espécie de gestão de compartilhada, em que policiais militares e bombeiros da reserva ficariam responsáveis por levar mais disciplina e valores morais. "Precisamos levar disciplina para dentro da educação. Temos de retornar os valores cívicos para as nossas crianças", disse. No Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel anunciou duas novas escolas militares em equipamentos públicos hoje desocupados.

Turma do Haiti e segurança pública

O setor militar mais próximo de Bolsonaro é composto principalmente por militares que lideraram as tropas da ONU no Haiti. O principal deles é, uma vez mais, o general Heleno. Sob sua influência foi nomeado recentemente o general Floriano Peixoto Neto, que participou da missão de paz no país como oficial de operações e depois como comandante das forças militares. Também esteve no Haiti o general e ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, que serviu como chefe de operações subordinado a Heleno. Já o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, foi engenheiro militar sênior da ONU no Haiti. E o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, da Secretaria de Governo, liderou as tropas em 2007. Por fim, o atual comandante do Exército, o general Edson Leal Pujol, também foi comandante das Forças de Paz no país.

O historiador Fico destaca a experiência desses oficiais no Haiti como fonte de inspiração para lidar com o problema da segurança pública no Brasil. "Esses generais tiveram experiências que são muito caras ao presidente Bolsonaro. Representam essa visão de que os problemas da seguranca pública podem ser resolvidos por meio de ocupação de favelas e coisas assim", explica.

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