Inspeção apontou problemas na barragem da Vale, mas laudo de segurança foi emitido mesmo assim
Dois laudos feitos cinco meses antes da tragédia apontam que a estrutura estava no limite da segurança STJ determinou a soltura de executivos da Vale e engenheiros responsáveis pelo monitoramento
Dois relatórios de inspeção da barragem da mina do Feijão, em Brumadinho, realizados cinco meses antes de a estrutura ruir por completo e deixar ao menos 142 mortos e 194 desaparecidos, apontaram problemas na estrutura. Ainda assim, os engenheiros responsáveis pelas avaliações, obtidas pelo EL PAÍS, não consideraram os problemas graves o suficiente para comprometer a barragem e acabaram por atestar sua segurança. Nesta terça-feira, três engenheiros responsáveis pelos laudos e dois executivos da Vale que regulavam o licenciamento e monitoravam o funcionamento da barragem foram colocados em liberdade por uma decisão liminar (provisória) do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Eles haviam sido presos provisoriamente há uma semana por suspeita de responsabilidade no rompimento.
A prisão havia sido autorizada na última terça-feira pela juíza Perla Saliba Brito, que identificou nos documentos em investigação indícios de autoria ou participação dos profissionais em crime ambiental, homicídio e falsidade ideológica. Ao analisar o recurso da defesa dos profissionais no STJ, o relator Nefi Cordeiro entendeu que todos eles "já prestaram declarações, já foram feitas buscas e apreensões e não foi apontado qualquer risco que eles pudessem oferecer à sociedade". A expectativa da defesa é de que os profissionais sejam soltos no máximo até esta quarta-feira.
A decisão liminar beneficia o gerente de meio ambiente, saúde e segurança da Vale, Ricardo de Oliveira, e o gerente executivo operacional responsável pelo complexo minerário Paraopeba (do qual a mina do feijão faz parte), Rodrigo Artur Gomes Melo. E também os três profissionais que assinaram o laudo de estabilidade: o geólogo César Augusto Paulino Grandchamp, funcionário da Vale, e os engenheiros Makoto Manba e André Jum Yassuda, funcionários da empresa alemã TÜV-SÜD, contratada pela mineradora para realizar as auditorias exigidas pela legislação brasileira.
As inspeções realizadas em agosto do ano passado apontaram problemas na drenagem e na erosão da barragem que rompeu e fez recomendações que incluem a aquisição de um novo radar para monitorar deslocamentos em frente à barragem e de mais medidores de pressão de água na estrutura. Apesar de detectarem os problemas, os engenheiros da TÜV-SÜD não os consideraram graves o suficiente para comprometer a estrutura e atestaram a segurança da barragem.
Conforme os laudos, a estabilidade do alteamento atendia à legislação brasileira, ainda que no limite de segurança. A base da barragem foi registrada como de fator 1,60, quando o fator mínimo de segurança para estruturas deste tipo no país é de 1,50. A empresa de auditoria então recomendou à Vale algumas medidas para reduzir fatores de instabilidade que poderiam culminar em gatilhos para um eventual rompimento. Entre elas, proibir detonações próximas à barragem, evitar o tráfego de equipamentos pesados na área, impedir a elevação do nível de água no rejeito e não executar obras que retirem material dos pés dos taludes ou que causem sobrecarga no reservatório ou na barragem. Vídeos do momento do rompimento mostram que havia tráfego de veículos relativamente próximos à barragem.
As barragens de mineração a montante —como eram as que romperam em Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 25 de janeiro— armazenam os rejeitos de metais comercializados nas minas e são consideradas mais frágeis, pois usam como barreira o próprio rejeito e não uma estrutura externa de concreto, por exemplo. São estruturas que precisam ser acompanhadas em todas as fases (construção, operação e descomissionamento) porque podem se desestabilizar e romper em poucos meses, na maioria das vezes por conta da má gestão do controle da água.
Falhas na drenagem
No caso da barragem I da mina do Feijão, a auditoria da TÜV-SÜD reitera que a estrutura já não recebia rejeitos e que havia um projeto para sua desativação.Também destaca que teve acesso a poucos dados referentes à fundação da barragem (na década de 1970) e que verificou várias incertezas quanto ao sistema de drenagem interna em vários alteamentos devido à carência de informações históricas. "Na maioria dos casos, tem-se como informação os projetos executivos do alteamento, porém não há as built [desenhos] indicando se a solução projetada foi efetivamente implantada na sua totalidade", diz o relatório. Esses desenhos só estão disponíveis a partir do sétimo alteamento da barragem, de 2003, quando a Vale comprou a mina.
Sobre a análise dos procedimentos de monitoramento, operação e manutenção da barragem, a auditoria aponta que o Manual de Operação da Barragem I (que estabelece os procedimentos de operação, manutenção, monitoramento e inspeções de segurança) está desatualizado. É este manual que determina os procedimentos para garantir a permanência da estabilidade das estruturas ao longo do tempo, bem como identifica quem são os responsáveis por cada um deles.
O advogado de defesa dos dois engenheiros da empresa terceirizada, Augusto de Arruda Botelho, afirma que a Justiça mineira decidiu pela prisão dos seus clientes com base apenas nas declarações de estabilidade, sem ter tido acesso ao laudo que subsidia este documento e contém um estudo extenso e detalhado das condições de segurança da barragem. "Esses engenheiros produziram laudos técnicos extensos e detalhados, com ressalvas e com recomendações para a Vale", diz o advogado. O advogado dos três funcionários da Vale que foram presos provisoriamente junto com os engenheiros da empresa alemã, Leonardo Salles, diz que não se pronunciará sobre os relatórios de inspeção divulgados nesta terça-feira. "A discussão sobre isso deve ser feita no curso do processo, que corre em segredo de Justiça", declarou ao EL PAÍS.
A Vale informa que a barragem que rompeu em Brumadinho passava por constantes auditorias externas e independentes e por inspeções quinzenais, conforme prevê a legislação brasileira. A última inspeção foi enviada à Agência Nacional de Mineração (ANM) —órgão público responsável por fiscalizar barragens de mineração— em 21 de dezembro do ano passado. Outras duas foram realizadas neste mês de janeiro, nos dias 8 e 22, mas não chegaram a ser reportadas a ANM e foram cadastradas apenas no sistema da mineradora. A ANM não esclarece se há um prazo específico entre a inspeção e o envio do laudo à autarquia, mas afirma que tem recebido todos os documentos exigidos à Vale.
Segundo a mineradora, nenhuma das inspeções realizadas detectou alteração no estado de conservação da estrutura, e a barragem que rompeu era monitorada por 94 piezômetros e 41 indicadores de nível da água (esses dois instrumentos são importantes para o controle da água na barragem). O relatório da TÜV-SÜD, porém, recomendava que a mineradora instalasse novos piezômetros em locais estratégicos "com o intuito de confirmar a hipótese de existência de lençóis empoleirados no rejeito da barragem".
A Vale sustenta que não houve sinais de risco de rompimento na barragem em Brumadinho, um argumento que não foi considerado crível pela Justiça de Minas Gerais, na decisão que ordenou a prisão preventiva dos cinco profissionais envolvidos no processo de monitoramento do empreendimento cuja liberdade foi determinada na decisão unânime da sexta turma do STJ desta terça-feira. Especialistas também tem sustentado que barragens não se rompem sem dar sinais prévios. Diante da gravidade da tragédia em Brumadinho, a ANM decidiu que exigirá relatórios de inspeção diários —e não mais quinzenais, como exigia antes do incidente— de todas as barragens a montante do país.
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