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Relatório confidencial da UE denuncia ‘apartheid’ judicial na Cisjordânia

Representantes europeus afirmam que Israel submete os palestinos a uma “discriminação sistemática”

Juan Carlos Sanz

A adolescente Ahed Tamimi, ícone da resistência palestina, foi condenada a oito meses de prisão por esbofetear em 2017 um militar israelense em sua casa em Nabi Saleh, norte de Ramallah, capital administrativa da Cisjordânia. O soldado Azaria Elor permaneceu atrás das grades por 14 meses depois de ter sido condenado em um conselho de guerra por executar um atacante palestino que jazia ferido na cidade de Hebron (sul) em 2016. Depois de meio século de ocupação, os representantes diplomáticos dos 28 países da UE constatam a “sistemática discriminação judicial” sofrida pelos palestinos na Cisjordânia. Em um relatório confidencial dirigido aos responsáveis pelo Serviço de Relações Exteriores em Bruxelas, ao qual o EL PAÍS teve acesso, os embaixadores em Jerusalém Leste e Ramallah reclamam que Israel reforme a justiça militar para “garantir um processo e um julgamento justos de acordo com o direito internacional”.

A adolescente palestina Ahed Tamimi diante de um tribunal militar israelense em dezembro de 2017
A adolescente palestina Ahed Tamimi diante de um tribunal militar israelense em dezembro de 2017AHMAD GHARABLI (AFP)

Os diplomatas que assinam o documento representam Governos que às vezes divergem abertamente sobre o conflito israelo-palestino, mas que entraram em acordo para descrever o exercício efetivo da ocupação israelense na Cisjordânia como “um regime dual”. Embora a expressão apartheid judicial não apareça no texto, seu conteúdo dá conta de uma justiça segregada. “O relatório é um mapeamento da situação dos direitos humanos na chamada Área C, de mandato exclusivo israelense e que cobre 60% do território ocupado, com um conjunto de recomendações dirigidas a Bruxelas endossadas por todos os chefes de missão”, diz uma fonte europeia em Jerusalém.

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Aos palestinos é aplicada a lei marcial e os regulamentos ditados por um departamento do Ministério da Defesa, e estão sujeitos aos tribunais militares de “Judéia e Samaria”, denominação bíblica cunhada em Israel para o território da Cisjordânia. Esses órgãos executivos e judiciais também são regidos por regras herdadas de antigos poderes coloniais ou administradores. Há leis otomanas ainda em vigor (por exemplo, para confiscar terras palestinas aparentemente não cultivadas), britânicas (para praticar detenções administrativas sem apresentar acusações e por tempo indefinido, que agora afetam cerca de 440 prisioneiros) e até mesmo jordanianas, as da Administração presente até 1967, quando Israel ocupou os territórios palestinos depois da Guerra dos Seis Dias. Os palestinos submetidos a processos criminais sob a ocupação têm uma taxa de condenação de 99,74%, de acordo com o relatório anual dos Tribunais Militares israelenses de 2001, o último disponível.

Documento Confidencial

Este documento reservado da UE, datado de 31 de julho e ainda pendente de ser estudado em Bruxelas, examina “a realidade de uma ocupação quase permanente”. Na Cisjordânia, mais de 2,5 milhões de palestinos são privados de seus direitos civis básicos e enfrentam “inúmeras restrições à sua liberdade de movimento”. A economia palestina também está submetida a um “substancial subdesenvolvimento” há cinco décadas.

Os representantes diplomáticos europeus concordam em defender a solução dos dois Estados como o melhor caminho para a paz regional. De comum acordo também admitem que o esforço da UE “no processo de criação de instituições estatais e de desenvolvimento de uma economia palestina sustentável”, como preveem os Acordos de Oslo de 1993, está sendo comprometido pelas limitações judiciais expostas no relatório, que também tem como destinatários os Governos dos 28 Estados membros.

Os 400.000 colonos judeus assentados na Cisjordânia estão sujeitos apenas à lei israelense, de acordo com um estatuto pessoal e extraterritorial. Os 300.000 palestinos que vivem na Área C têm de responder a uma legislação penal muito mais rigorosa. Um colono deve comparecer perante o juiz civil israelense em um prazo de 24 horas, enquanto um palestino pode ser levado perante a jurisdição militar até 96 horas depois.

Em termos de liberdades civis, como liberdade de expressão e reunião, ou de direitos urbanísticos de construção, os palestinos também são discriminados. Reuniões de mais de 10 pessoas exigem permissão do comandante militar, que raramente é concedida. A pena por violar a proibição é de 10 anos de prisão. “O reagrupamento familiar, especialmente quando um dos membros da família tem dupla nacionalidade – palestina e de um país europeu – também é dificultado pelas autoridades israelenses”, destaca a fonte europeia.

Apenas 1,5% dos pedidos de licença de obras apresentados pelos palestinos na Área C da Cisjordânia foram concedidos entre 2010 e 2014. Como consequência, mais de 12.000 construções foram demolidas, consideradas ilegais pelos administradores militares da ocupação. A UE financiou diretamente 126 planos urbanísticos palestinos na Área C, dos quais apenas cinco foram aprovados por Israel.

“Os palestinos da Cisjordânia estão sujeitos a mecanismos [judiciais] sobre os quais não têm nenhum direito de representação”, aponta o documento confidencial europeu, “já que os militares israelenses são uma entidade externa que responde apenas a um Governo estrangeiro”. Em junho do ano passado, cerca de 6.000 palestinos (350 deles menores de idade, como Ahed Tamimi) estavam internados em prisões localizadas em território israelense como “prisioneiros de segurança”, assim chamados por se tratar de “casos de violência de origem nacionalista”.

No tribunal militar em Tel Aviv, Israel, em 4 de janeiro de 2017, o soldado israelense Azaria Elor espera com a família a leitura da sentença durante o seu julgamento por atirar e matar um atacante palestino reduzido e imobilizado
No tribunal militar em Tel Aviv, Israel, em 4 de janeiro de 2017, o soldado israelense Azaria Elor espera com a família a leitura da sentença durante o seu julgamento por atirar e matar um atacante palestino reduzido e imobilizadoHeidi Levine (EFE)

Diplomatas em Jerusalém e Ramallah

O relatório dos diplomatas da UE em Jerusalém e Ramallah considera que Israel viola a legislação internacional ao levar prisioneiros e detidos para fora da Cisjordânia, ao mesmo tempo em que dificulta o direito de visita dos familiares.

Para crimes idênticos cometidos no mesmo território, existem dois padrões judiciais diferentes. As investigações da polícia israelense do “distrito da Judéia e Samaria” levam apenas a acusações formais contra colonos judeus em 8% dos casos de ataques contra palestinos ou danos a suas propriedades.

O número de “crimes nacionalistas” cometidos pelos habitantes dos assentamentos contra palestinos na Cisjordânia triplicou no ano passado, quando 482 incidentes desse tipo foram registrados, em comparação com os 140 casos registrados em 2017, segundo com o jornal Haaretz. Nos dois anos anteriores houve uma redução desses ataques depois do impacto provocado em 2015 pela morte de um menino de 18 meses, queimado vivo, e de seus pais, em consequência de um ataque em Duma, cidade localizada a nordeste de Ramallah. Dois jovens colonos ainda aguardam julgamento por esse incêndio criminoso.

Presidente Abbas dá as costas à sociedade civil palestina

O relatório dos chefes de missão europeus junto à Autoridade Palestina, com sede em Jerusalém e Ramallah, também é crítico com o Executivo do presidente Mahmoud Abbas, que recebe da UE uma ajuda financeira essencial para sua sobrevivência. A politização do sistema judicial, as prisões arbitrárias (incluindo jornalistas), os abusos e torturas em centros de detenção e o uso desproporcionado da força contra manifestantes pacíficos, entre outras ações do Governo palestino, recebem a censura do relatório diplomático da União. O rais Abbas não está sujeito a controle parlamentar e legisla através de decretos sobre uma sociedade civil muito jovem, mas limitada pela hegemonia do líder octogenário.

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