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“Do PSDB para o PT mudaram um pouco a receita do bolo, agora há uma ruptura drástica da política externa”

Para o professor de relações internacionais Dawisson Belém Lopes, Brasil chega ao encontro da elite financeira mundial em Davos com uma equipe de governo com discursos conflitantes

O presidente Jair Bolsonaro desembarcou, nesta semana, na Suíça, para apresentar sua agenda liberal de reformas e privatizações no Fórum Econômico Mundial de Davos, numa edição de forte ausência de líderes internacionais. Seu aguardado discurso de abertura do evento, no entanto, foi mais curto —apenas 8 minutos— e surperficial do que o esperado por líderes e investidores. Na avaliação de Dawisson Belém Lopes, professor e diretor adjunto de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Bolsonaro parece não ter entendido a importância do encontro da elite financeira mundial, ao ter brindado um discurso "fraco" e desconectado das dinâmicas internacionais. Nem mesmo o tema do evento, a globalização 4.0, compareceu em sua fala de estreia. 

Dawisson Belém Lopes, professor e diretor adjunto de Relações Internacionais da UFMG.
Dawisson Belém Lopes, professor e diretor adjunto de Relações Internacionais da UFMG.Arquivo pessoal

Apesar do aparente consenso entre os dirigentes políticos que acompanham o presidente no evento, o Brasil também chegou ao encontro da elite financeira mundial com uma equipe de Governo com discursos conflitantes. Ao mesmo tempo que o superministro de Economia, o liberal Paulo Guedes, prega a adoção de uma maior abertura do país, o chanceler Ernesto Araújo defende constantemente um discurso antiglobalista. Para Lopes, enquanto as falas continuarem em rota de colisão, dificilmente se terá clareza do que de fato será implementado no Governo sob o comando de Bolsonaro, uma gestão que ainda é vista com desconfiança internacionalmente. O professor aposta, no entanto, numa maior atuação do vice-presidente Hamilton Mourão e dos militares do Governo, alinhados aos anseios liberais, na política externa, segurança internacional e defesa nacional.

Pergunta. O que o senhor achou do curto discurso de Bolsonaro em Davos?

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Resposta. Foi mais do mesmo. Ele parece não ter entendido a especificidade do momento, a importância do fórum. Os americanos costumam dizer que, quando em campanha, o indivíduo vai ganhando um tom presidencial, mas até hoje Bolsonaro não parece presidente, ele continua convocando as massas, usando de recursos baratos, fáceis, como, por exemplo, falar de bolivarianos e coisas inespecíficas. Minha impressão é que ele ainda precisa ganhar postura de presidente. A audiência que estava em Davos não está de brincadeira, estamos falando de um dos fóruns mais bem frequentados do mundo e se esperava mais. As pessoas sentiram uma certa decepção, elas não conheciam Jair Bolsonaro, então, algumas delas, esperavam um indivíduo mais antenado e conectado com as dinâmicas internacionais. Ao fim e ao cabo, ele não apareceu tão à vontade em Davos. Acho que é muito eloquente a respeito disso que ele tenha sido fotografado comendo isoladamente sem ter usado a ocasião para se ter encontrado com chefes do Estado, lideranças. Foi um discurso fraco, que não deixou marca e que, inclusive, deixa uma impressão negativa.

P. E como  avalia os primeiros movimentos do Governo em relação à política exterior?

R. Ela já se apresenta como algo novo. Para usar uma metáfora que escutei de um embaixador do Governo anterior, é como se na época do PT houvesse mudança nos ingredientes para fazer o bolo, mas agora alteraram a forma do bolo. Isso gera uma incompreensão profunda e uma dificuldade de articular a corporação diplomática e os demais atores —para além do Itamaraty— que também têm papéis na produção da política externa brasileira. É algo muito novidadeiro em termos conceituais, essa política externa não se apoia nos tradicionais pressupostos de apoio ao multilateralismo ou no direito internacional. Do governo do PSDB para o PT mudaram um pouquinho a receita do bolo, mas agora há uma ruptura drástica.

P. Essa nova política internacional não parece estar em sintonia com o discurso de outras alas do Governo. Enquanto o chanceler Ernesto Araújo fala em antiglobalismo, o superministro da economia, Paulo Guedes, afirma que quer abrir os mercados. Os dois estão essa semana juntos apresentando o novo Governo na cúpula de Davos...

R. O Fórum Econômico de Davos é um evento organizado e pensado exatamente por pessoas que estão sendo hostilizadas por Bolsonaro e por assessores mais próximos, como o da presidência para assuntos internacionais [Filipe Martins] e o guru do presidente, Olavo de Carvalho. Quem está a cargo do Fórum de Davos são os globalistas. Essa é a contradição mais interessante, pessoas que acreditam em uma ordem liberal. Há de fato um desencontro entre as alas do Governo, a equipe econômica está muito à vontade com o discurso de Davos, que ecoa daqueles resorts elegantes e das elites financeiras econômicas globais. Uma fala que está em sintonia com Paulo Guedes e seus colaboradores. Ao passo que o discurso de Araújo, Bolsonaro e Martins vai em rota de colisão, em direção oposta. A verdade é que ainda não há clareza sobre qual será o desenho da formulação desse Governo, o que de fato será implementado.

P. Bolsonaro fez seu debut internacional nesta semana e o vice Hamilton Mourão assumiu, pela primeira vez, a Presidência por uns dias. Qual acredita que será o papel do general da reserva?

R. Assim que foram anunciados os nomes do primeiro escalão do Bolsonaro, alguns analistas cogitaram que haveria três núcleos principais no Governo: um nacionalista religioso, onde está inserido Ernesto Araújo, um núcleo econômico, protagonizado por Paulo Guedes, e um núcleo militar, com os militares que também são nacionalistas, de alta patente e com experiência internacional, muitos deles participaram de missões da ONU. Não estamos lidando com militares xucros. São pessoas que têm rodagem e também ficam à vontade nesses salões internacionais. São cosmopolitas e, assim como os economistas, também globalistas. Entre esses três núcleos, eu diria que apenas um deles tem capacidade institucional, coerência, coesão interna e respaldo popular hoje alto: os militares. Na história do Brasil, eles têm participado de momentos críticos e capitais e mostrado capacidade de agir de forma coordenada. Tenho dúvida se o núcleo religioso, nacionalista e antiglobalista consegue se organizar e articular e produzir coisa efetivas. Também tenho dúvida sobre o núcleo econômico financeiro. Não sei se eles estão tão afinados. Os militares, por outro lado, são uma corporação. Eu tendo a achar que aquela imagem que se formou que haveria três núcleos medindo força é ilusória e aparente. A verdade é que tem apenas um núcleo duro forte com capacidade de agência que são os militares e outros são mais frágeis. O Mourão claramente tem uma agenda e desejo de implementar ações que não vão nessa onda antiglobalista. Os militares terão papel de esteio, de uma reserva, quando a coisa começar a sair um pouco do trilho, eles vão puxar o freio de mão.

P. O senhor avalia que Mourão tem mais chances de assumir as decisões no âmbito da política exterior? Diferentemente de outros vices, ele terá um papel de maior protagonismo?

R. Acho que sim, ele está em condições melhores de ação nas questões críticas. Particularmente nos assuntos de política externa, segurança internacional e defesa nacional, eu vislumbro um vice-presidente bastante atuante. O Ernesto pode fazer mil discursos, pode inventar conceitos, escrever no blog dele, mas, para as questões capitais do Estado brasileiro, entendo que Mourão, Augusto Heleno, Santos Cruz [ministro da Secretaria de Governo] e o primeiro escalão militar do Governo irão prevalecer. Mourão deve, inclusive, fazer a defesa de um papel mais protagônico para a China na política externa. O vice parece mais consciente que o país asiático é responsável por 28% do nosso mercado exterior e de que a China precisa estar mais presente do que o Bolsonaro dava a entender na campanha. O presidente usava um discurso xenofóbico. "Chinês não vai comprar terra aqui não". A realidade, no entanto, é que hoje você não governa sem o capital chinês.

P. Bolsonaro tem tentando seguir os passos de Donald Trump em alguns temas. Um modelo "trumpista" de Governo tem alguma chance de funcionar no Brasil atual?

R. Não cabe, esse é um contrabando acrítico e fadado a dar errado. Essa aproximação de Israel, que pode ser vista como um alinhamento aos EUA, pode ser um erro... As relações de Brasil com Israel são boas historicamente, mas na tensão que se estabelece entre israelenses e a comunidade árabe, o Brasil esteve sempre mais próximo do mundo árabe, da comunidade islamizada. Agora vemos outra mudança radical de discurso: de distanciamento dos árabes e uma aproximação meio sem precedente e sem ter porquê de Israel. Se apoiam em argumentos do modelo de dessalinização, da tecnologia militar de Israel como argumento. O Mourão deixa muito claro, em entrevista à revista Época [ em janeiro], que está contrário a esta aproximação. Ele até brinca: "Agora todos vamos ter que bater palma pra Israel? Todo mundo vai ter que gostar de Israel e dos EUA?". Essa fala aponta para um questionamento importante de por que objetivamente e estrategicamente o Brasil está fazendo isso. Acho que essa interpelação os militares vão fazer.

P. O que está em jogo nessa aproximação proposta por Bolsonaro?

R. A estimativa conservadora que é feita é de que, se o Brasil de fato mudar sua embaixada para Jerusalém, poderemos ter perdas por força de algum tipo de boicote da Liga Árabe de cerca de 15 bilhões de dólares por ano. E o Brasil não está em condições de perder essa quantia.

P. Quais as chances dessa transferência da embaixada não acontecer de fato?

R. Já não está acontecendo tão rapidamente. O general Santos Cruz [Carlos Alberto], mesmo fez uma ressalva que é necessário esperar com calma. Eu não tenho essa convicção toda que isso sairá. Se o vice-presidente se opõe publicamente para a grande imprensa é difícil acreditar que o general será atropelado nessa questão, eu não apostaria nisso não. É preciso enfatizar que essa escolha por Israel também prejudica os foros internacionais. Para essa nova política antiglobalista isso pode não significar muita coisa. Note, entretanto, que isso gera um isolamento do Brasil que já se traduziu, por exemplo, na baixa presença de chefe de Estados na posse de Bolsonaro. Quando você provoca os árabes, você está provocando um bloco de 60 países, multilateralmente isso já é muito ruim. O Brasil já sai perdendo pois ganha antipatia de 60 países num mundo de 200. São muitas coisas envolvidas, perdas econômicas, perdas do ponto de vista político-diplomático. Isso ainda não está muito dimensionado pela equipe, digamos, religiosa nacionalista de Ernesto Araújo.

P. A recusa do Brasil em sediar a Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU), a COP25, e a retirada do país do Pacto Global para Migração também impactam na imagem do Brasil internacionalmente?

R. É inevitável que o Brasil seja, no discurso internacional, associado a outros governos e regimes não liberais e isso já está acontecendo. Na mídia internacional, o país vem sendo associado a Viktor Orbán, na Hungria, a Rodrigo Duterte, nas Filipinas, ao atual presidente da Polônia... Isso não é bom, significa danos à reputação brasileira. São referências de um conjunto de líderes que são ostensivamente contrários a essa fórmula liberal, em certo sentido, de lidar com as relações internacionais. E essa é a fórmula vencedora da segunda guerra mundial. Quando os aliados venceram, EUA, Reino Unido, França, União Soviética, isso foi um símbolo, um marco muito forte de certa intolerância ao que chegasse próximo ao fascismo e o nazismo. Foi nesta época que se criou a maioria das instituições globalistas (ONU, FMI, Banco Mundial…) Na medida que Bolsonaro se associa a esse grupo de novos governantes que não têm crenças liberais tão fortes isso traz danos reputacionais para o Brasil, já que eles põe em xeque as instituições criadas no pós-guerra. O país acaba ficando para escanteio. O meio ambiente e as migrações são parte desses temas caros ao consenso liberal, e o Brasil está desafiando com uma atitude que não condiz ao que se espera dele.

P. Quais são as consequências que o senhor vislumbra para a nova postura do Brasil?

R. O Brasil vai perder voz nas instituições internacionais e atualmente ele possui uma presença forte nestes organismos. Hoje o país está entre os dez do mundo em presença nas chefias de organismo internacionais, isso evidentemente gera capacidade de moldar a ordem das relações internacionais, ele vai perder isso. De ser um ator com alguma relevância no cenário global. Isso pode também ser reverter em perdas no comércio e turismo. O Brasil não pode desprezar as dinâmicas da indústria e do mercado externo. Mas estão tratando essa atividade econômica com um certo simplismo. A nova postura do Brasil pode gerar perdas na economia. Ele pode se isolar do mundo.

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