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A história mostra que o Brexit é impossível

O Reino Unido se debate entre um mito nacional isolacionista e a realidade histórica, que mostra que as raízes do país estão na Europa

Guillermo Altares
Winston Churchill em Florença em 1944
Winston Churchill em Florença em 1944AFP / Imperial War Museum

Quando se fala dos fundadores da União Europeia, sempre se menciona Robert Schumann ou Jean Monnet, que até deram seu nome a edifícios oficiais da Administração comunitária, mas se tende a esquecer um dos mais importantes: o britânico Winston Churchill, embora um edifício de Estrasburgo também tenha seu nome. Em 1946, em Zurique, o ex-primeiro-ministro conservador afirmou que “se a Europa pudesse se unir para desfrutar de sua herança comum, sua prosperidade e sua felicidade não teriam limites”, em um discurso no qual falou de “Estados Unidos da Europa”. Mas antes, no início da Segunda Guerra Mundial, Churchill tinha liderado uma iniciativa ainda mais importante do ponto de vista europeu: queria que franceses e britânicos compartilhassem a mesma nacionalidade. Sua ideia se baseava na noção de que princípios como a democracia e a liberdade eram mais poderosos do que qualquer bandeira, o mesmo pensamento que pôs em andamento a união.

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No entanto, o político conservador também é um símbolo da distância que alguns britânicos querem marcar com o continente, da ideia defendida por amplos setores da sociedade de que os britânicos são diferentes do resto dos europeus. Não é uma casualidade que os filmes sobre a figura de Churchill, ou sobre a retirada de Dunquerque em 1940, tenham se multiplicado desde o Brexit. O Reino Unido sempre se debateu entre estas duas almas: a imagem que quer construir de si mesmo como país, com a névoa no canal que deixa o continente isolado, e a teimosa realidade que mostra que o Reino Unido é parte indissociável da Europa, quer os defensores do Brexit queiram ou não.

Nenhum país é uma ilha, nem mesmo aqueles que geograficamente sejam. Como escreveu no jornal The Guardian o historiador David Edgerton, autor de The Rise and Fall of the British Nation (“ascensão e queda da nação britânica”), “em 1900, o Reino Unido era um lugar muito cosmopolita. Estava cheio de imigrantes europeus. A comida vinha do mundo todo e o carvão britânico era vital para as nações bálticas e mediterrâneas. Em troca, Londres dependia do ferro da Suécia e do norte da África; seus ovos e seu bacon vinham da Dinamarca e da Holanda; e seus jornais eram impressos em papel escandinavo”. O que Edgerton descreve é uma união antes da União.

Sempre houve pró-europeus, muito mais no Partido Trabalhista, e antieuropeus, principalmente entre os conservadores e entre a poderosa imprensa sensacionalista − The Sun e The Daily Mail fizeram mais do que ninguém para tentar manter o Reino Unido fora da Europa. Mas esses dois campos nunca foram definidos apenas por motivos ideológicos, e a transferência entre eles sempre foi constante, como ocorreu com Margaret Thatcher. Aliás, foi um primeiro-ministro conservador, Edward Heath, que assinou o tratado de ingresso na EU − que ocorreu em 1973 e foi ratificado por ampla maioria em um referendo em 1975. Mas todos, inclusive os europeístas, gostam de apontar as diferenças. Os fatos, de qualquer forma, falam muito mais alto: o Reino Unido faz parte da história do continente e é uma nação europeia a mais, não só dos pontos de vista geográfico e econômico, como também do político.

Os britânicos foram romanizados − embora tenha custado, é verdade − e sua capital é uma herança de Roma, por muito que venerem a rainha celta Boudica, que se levantou contra as legiões romanas, como mostra um monumento em Westminster, no coração do poder londrino. Os celtas, dos quais se nutre um estranho nacionalismo britânico que tem raízes na pré-história, e aos quais o British Museum dedicou uma grande exposição há quatro anos, são um povo que ainda oculta muitos mistérios, mas sobre o qual existe uma certeza: eles se estabeleceram em uma parte muito importante da Europa na Idade do Ferro, incluindo as ilhas britânicas.

Guerra dos Cem Anos

A tapeçaria de Bayeux, que leva o nome da cidade francesa em que é preservada, relata a conquista normanda da Inglaterra, enquanto um passeio pelo centro da França revela que há tantos castelos franceses como britânicos, produto da Guerra dos Cem Anos, porque os reis ingleses controlavam uma parte importante do território francês. Quando os protestantes franceses, os huguenotes, fugiram das perseguições, estabeleceram-se na Inglaterra, assim como muitos refugiados da violência revolucionária ou dos pogroms no Império Russo. Sem falar no papel crucial da Inglaterra na derrota de Napoleão. Até Victor Hugo escreveu Os Miseráveis no território de Sua Majestade. E, naturalmente, os britânicos lutaram nas duas guerras mundiais do século XX e milhares de seus soldados, toda uma geração, estão enterrados nos campos de Flandres.

A Espanha abriga uma das provas mais indiscutíveis da profunda relação britânica com o resto da Europa: o rochedo de Gibraltar, que os britânicos ganharam no Tratado de Utrecht e resistiu a diferentes cercos durante o século XVIII. Não foi o que ocorreu com Minorca, que também foi britânica, mas foi recuperada pela Espanha. O historiador britânico John Julius Norwich, recentemente falecido, relata em seu ensaio The Middle Sea: A History of the Mediterranean (“o mar do meio: uma história do Mediterrâneo”), que o rei Jorge III do Reino Unido não ficou muito contente com a mudança e escreveu em uma carta: “Eu teria gostado mais de Minorca ou as duas Flóridas e Guadalupe do que desta orgulhosa fortaleza, em minha opinião uma fonte de outra guerra, ou no mínimo de uma constante inimizade latente”. Ele sabia que naquela época, assim como agora, o lugar do Reino Unido estava no mundo e, principalmente, com as demais nações europeias com as quais, assim como agora, ele estava obrigado a se entender.

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