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Tribuna
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As armadilhas que Bolsonaro fez para seu próprio Governo

Difícil prever se a estratégia de governar por "tentativa e erro" fará com que Bolsonaro escape da política "como sempre"

Apoiadores de Jair Bolsonaro durante o evento da posse, em Brasília.
Apoiadores de Jair Bolsonaro durante o evento da posse, em Brasília.SERGIO MORAES (REUTERS)
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O início de 2019 e do novo Governo reabrem a rodada de “previsões” sobre a política brasileira. Para começar, é necessário lembrar que, no começo de 2018, nenhum analista ou cientista político imaginava o resultado das últimas eleições gerais: a vitória do capitão reformado e de inexpressiva carreira no Legislativo, Jair Bolsonaro, assim como a bancada construída pelo seu partido, o PSL, na Câmara. Isso sem contar as surpresas em algumas eleições estaduais, como no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.

O cenário era muito volátil. Crise econômica prolongada, a operação Lava Jato abatendo os principais partidos do país e escolhas equivocadas das elites políticas: Da contestação do resultado eleitoral de 2014, passando pela aposta no impeachment como mecanismo para antecipar a alternância no poder e “estancar a sangria”, na já célebre expressão do senador Romero Jucá (MDB/RR). Por fim, havia também a atuação claramente política e imprevisível de setores do Judiciário. Não era tarefa fácil fazer previsões. Continua a não ser. Ainda assim, como o ano é novo, vale renovar também a esperança de que dessa vez acertemos um pouco mais.

Começo pelo estilo de comunicação da nova administração. Tudo indica que a presidência de Jair Bolsonaro vai adotar um tom parecido com o da campanha eleitoral. Redes sociais terão um papel mais importante do que nas administrações anteriores e o Governo, direta ou indiretamente, deverá lançar mão de comentários e críticas à oposição e à imprensa via Twitter e Facebook. Isso terá um papel de mobilização de apoiadores mais convictos. Segundo o Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb)[1], realizado em novembro, 24,2% dos eleitores do capitão, no primeiro turno, tinham como principal meio de informação sobre política redes sociais como Twitter, Facebook e WhatsApp. Apenas para efeito de comparação, 14,1% dos eleitores de Fernando Haddad (PT), no primeiro turno, tinham as redes sociais como principal forma de aquisição de informações sobre política.

Pelo menos no início do Governo, as referências negativas ao PT e à esquerda deverão ser constantes e com tom agressivo. Como muitos analistas notaram, o “antipetismo” é hoje a principal identidade política dos brasileiros. Segundo dados do Eseb, em pergunta espontânea, 27,3% dos entrevistados declararam “não gostar” do partido de Lula. Como comparação, apenas 28,1% afirmaram sentir alguma proximidade por uma agremiação política, sendo o PT o líder nas preferências, com 10,5%.

Resumindo, não é provável que o clima de “polarização digital” e a chuva de informações parciais e fragmentadas termine com o novo governo. A estratégia, mimetizada da Administração Trump e defendida por pessoas do núcleo pessoal do presidente, vai tornar a vida da imprensa mais crítica e investigativa bastante difícil e desagradável, com ataques virtuais constantes.

Na área de políticas públicas, algumas faturas serão cobradas. A ausência de uma agenda clara e a inexperiência de articuladores políticos e ministros em uma série de áreas deixarão o Governo ainda mais suscetível a pressões. Bolsonaro foi sobrevotado entre os evangélicos. Nos dois turnos, de acordo com o Eseb, cerca de 40% dos seus votos vieram desses eleitores, que representam 31% do total. O candidato também recebeu o apoio de lideranças religiosas importantes, como pastores e políticos ligados à Universal e à Assembléia de Deus. Tentar avançar em pautas conservadoras nas áreas de Saúde, Educação e Direitos Humanos devem ser as prioridades desse grupo.

De forma semelhante, o mercado financeiro vai fazer valer a expressão “não existe almoço grátis”. Responsável por dar um verniz de credibilidade ao candidato sem experiência administrativa e cujas ideias sobre economia oscilavam entre o vazio e um estatismo corporativista, os atores que bancaram a conversão de Bolsonaro ao liberalismo econômico vão exigir o fim do Estado organizado a partir do pacto construído na Constituição de 1988. Reforma da previdência, desregulamentação crescente do mercado de trabalho e a maior presença de agentes privados no fornecimento de serviços públicos, inclusive nas áreas de Saúde e Educação, vão compor a maior parte das “contas a pagar” da nova administração.

Boa parte dessa agenda, especialmente na área econômica, vai precisar de sólido apoio no Congresso. É aqui que reside a grande incógnita sobre o novo governo. A candidatura de Bolsonaro surfou na onda “antipartidos” e “antissistema” gestada desde as manifestações de junho de 2013. Segundo o Eseb, 84,4% dos eleitores brasileiros possuem “pouca” ou “nenhuma” confiança nos partidos políticos, e 81,2%, no Congresso Nacional.

No período pós-regime autoritário, os presidentes mais bem-sucedidos em avançar suas agendas, especialmente em áreas sensíveis, foram aqueles que contaram com os partidos para a construção de maiorias no Congresso: o “presidencialismo de coalizão”. Nesse sentido, Bolsonaro construiu uma armadilha para si mesmo e seu Governo. Prometeu que não iria fazer política “como sempre”. Dessa forma, restam duas opções: a primeira é abrir mão de suas promessas e reorganizar seu ministério ainda no primeiro ano de forma a construir uma base mais sólida para a aprovação de medidas complexas, como a reforma da previdência e a desvinculação do orçamento da União; a segunda, negociar com bancadas suprapartidárias, grupos de pressão e parlamentares individualmente, mobilizando parte de seus apoiadores e da opinião pública a seu favor. Essa estratégia tende a ser, no longo prazo – passada a Lua de Mel, mais difícil de coordenar e mais ineficiente: ou seja, o governo tende a aprovar menos do que poderia.

No curto prazo, dada a composição do ministério, o mais provável é que o novo governo opte pela segunda estratégia. A famosa lógica da “tentativa e erro”, porém, pode levar a uma alteração de rumo ao longo do mandato.

Ao final, com o que ficamos? O que esperar? Podemos esperar um governo com características populistas e propostas conservadoras nas áreas de Costumes, Educação e Saúde. Podemos esperar também a tentativa de rever o papel do Estado e de provocar um choque liberal muito mais forte do que o experimentado durante a administração de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

É difícil dizer, porém, se esses objetivos serão plenamente alcançados. No entanto, se adotarmos como medida de sucesso de um governo a sua capacidade de continuar no poder (via reeleição ou apoio a um candidato alinhado), não é estranho imaginar que algum crescimento econômico e a redução no número de desempregados seja suficiente para que o bolsonarismo permaneça no poder por pelo menos oito anos. Se isso acontecer, seja por “sorte ou mérito”[2], é possível que uma nova clivagem, opondo esquerda e direita e visões bem distintas sobre políticas públicas, se consolide no País, reorganizando as identidades políticas e o sistema partidário.

Oswaldo E. do Amaral é cientista político e diretor do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

[1] O Eseb é uma pesquisa nacional realizada pelo Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 2002 e faz parte do consórcio “Comparative Study of Electoral Systems”, coordenado pela Universidade de Michigan, nos EUA. Foram entrevistados 2506 eleitores em todos os estados do Brasil e a pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

[2] Tomo essa expressão emprestada dos colegas Daniela Campello (FGV-RJ) e Cesar Zucco (FGV-RJ), que vêm analisando, em uma série de trabalhos, os impactos da economia internacional em democracias novas e consolidadas.

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