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Sexo, dinheiro e gravações: a ‘fogueira’ de Trump

O caso mais perigoso judicialmente para o presidente dos EUA não é a trama russa. O grande risco está nos escândalos relacionados a sua vida privada

Amanda Mars
Trump atende ao 40º aniversário da revista ‘Playboy’, realizado no hotel Park Hyatt de Nova York em 1993.
Trump atende ao 40º aniversário da revista ‘Playboy’, realizado no hotel Park Hyatt de Nova York em 1993.Ron Galella (WireImage)
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O cara era podre de rico. Já nasceu endinheirado, filho de um construtor de residências em bairros humildes de Nova York, e chegou a Manhattan nos anos setenta, onde rapidamente começaram a brotar os arranha-céus com seu nome, em letras douradas. Exagerado, falastrão e viciado em fama, lançou-se também ao mundo da televisão para apresentar um reality show: The Apprentice.

Em um dia de junho de 2006, durante uma festa na Mansão Playboy em Los Angeles, deparou-se com a modelo Karen McDougal, eleita na época Playmate do Ano. A mulher conta que alguns dias depois conversaram pelo telefone, marcaram de se encontrar para jantar em um hotel de Beverly Hills e, em certo momento, tiraram as roupas. Assim começou um suposto idílio que se prolongaria até 2007 quando, diz, a culpa se apoderou dela: o milionário estava casado há apenas um ano com sua terceira esposa, que acabava de dar à luz um filho. Nessa época, o empresário, também conheceu Stormy Daniels, nome artístico de uma atriz do cinema pornográfico que encontrou em um torneio de golfe. Anos depois, ela também revelou um affaire.

Tudo seria apenas um deslize vulgar a ser ocultado da esposa se o velho magnata estivesse conformado com seus negócios e sua fama televisiva, e não sonhasse com algo mais, como ser presidente dos Estados Unidos. Lançou-se candidato nas eleições de 2016. Quando alguns meses antes da votação as duas mulheres ameaçaram contar suas histórias, apesar de o empresário negá-las, seu advogado sacou o talão de cheques. Era mais do que um assessor, era o pau-para-toda-obra, o fiel escudeiro, que se declarava capaz de “receber uma bala” a fim de protegê-lo.

Para a atriz pornô, pagou 130.000 dólares em troca de seu silêncio. Mas para a modelo da Playboy, lançou mão de outro velho conhecido do submundo de Manhattan, David Pecker, dono de vários tabloides especializados em fofocas, especialmente de alcova. Pecker comprou a história exclusiva do romance que McDougal queria contar por 150.000 dólares. Jamais a publicou. Os dois pagamentos acabaram sendo revelados pouco depois que o milionário fez seu juramento como presidente, em meio a uma investigação federal. As transações se tornaram supostos crimes de financiamento ilícito de campanha, já que o objetivo era silenciar essas mulheres para proteger a imagem do candidato nas últimas semanas antes da votação. Aquele advogado que prometia dar a vida pelo chefe acabou contando tudo à polícia e apontou o cliente como mandante. Este tratou de negar, mas dificilmente contava com um detalhe: o funcionário tinha gravado secretamente a conversa na qual falavam sobre o pagamento à modelo.

Se o milionário não se chamasse Donald Trump e o advogado não fosse Michael Cohen, tudo pareceria um capítulo descartado de A fogueira das vaidades, o mítico romance de Tom Wolfe que tão bem retrata os esgotos de Nova York. Mas se trata de uma peripécia real, tão real que colocou o mandatário norte-americano em sérios apuros legais na investigação da trama russa. O procurador especial Robert S. Mueller deparou-se com o assunto enquanto explorava as possíveis conexões entre o círculo de Trump e o Kremlin para interferir nas eleições de 2016, com o objetivo de favorecer a vitória do republicano frente à democrata Hillary Clinton. Depois de mais de um ano e meio de investigações, com a informação pública disponível, o assunto mais perigoso judicialmente para o magnata no momento não vem de reuniões em embaixadas ou telefones vermelhos com fins perversos, mas da Manhattan do sexo, do dinheiro e das conversas gravadas.

“Lembrem, Michael Cohen só se tornou ‘dedo-duro’ depois que o FBI fez algo impensável antes do início da ‘Caça às Bruxas’. “INVADIRAM O ESCRITÓRIO DE UM ADVOGADO”, escreveu Trump em sua conta do Twitter em 15 de dezembro passado, quando Cohen se declarou culpado diante do juiz. Aceitou uma pena de prisão de três anos, e apontou seu ilustre ex-cliente como mandante dos crimes. Trump disse, em inglês, “rat” — rato — a expressão que usavam mafiosos como Al Capone para se referir aos informantes.

Em outra ocasião usou as palavras “flipper” e “flipping”, que no jargão do crime identificam a forma como as autoridades podem forçar uma testemunha a acusar ou delatar um ex-comparsa mediante ameaças. “Vejo flippers há 30, 40 anos. Tudo é maravilhoso quando retiram 10 anos da pena de um para depois acusar o seguinte do maior escalão”, queixou-se à Fox o presidente.

Para entender como a gíria dos gângsters chegou à Casa Branca é preciso voltar ao Trump de 25 anos recém-chegado a Manhattan, um atrevido louco para se infiltrar nas altas rodas da elitista ilha. Se essas rodas tivessem um endereço postal nos anos setenta, seria o do seleto Le Club, onde conseguiu ingressar depois de três tentativas. Ali conheceu um personagem sinistro da história da cidade, o advogado Roy Cohn, consigliere de mafiosos como Tony Salerno, chefe dos Genovese, ou Carmine Galante, dos Bonnano, além de assessor do senador Joseph McCarthy na caça às bruxas anticomunista. Cohn, duas décadas mais velho que Trump, se tornou seu advogado e braço direito. Foi o homem que, segundo Marc Fischer, coautor da biografia Trump revelado, “o ensinou a atacar”. Naqueles anos começaram a ser erguidos os edifícios com seu sobrenome, alguns deles, como o Trump Plaza, com o concreto vendido por uma companhia controlada pela máfia. Era a S&A Concrete, do citado Tony Salerno, que tinha se infiltrado em boa parte do negócio na cidade.

The New York Times relatava em janeiro passado, citando fontes presentes na sala, que em um dia de março de 2017, frustrado com a investigação da trama russa — quando tentava manter a investigação sob o controle do Departamento de Justiça e evitar que passasse às mãos de um procurador especial independente — Trump perguntou: “Onde está meu Roy Cohn?”.

Não tinha reencarnado em Michael Cohen, mas este tampouco era uma irmã de caridade. Cohen começou a trabalhar para a Fundação Trump em 2007, e aos poucos se tornou o homem de confiança do empresário. Ele pressionava jornalistas que pretendiam publicar informações, como sua famosa ameaça a um repórter do Daily Beast em 2015: “Vou garantir que nos encontremos um dia no tribunal e vou tirar de você cada centavo, inclusive os que você ainda não tem”. Também foi encarregado de contatar funcionários russos para tentar promover a construção de um arranha-céu em Moscou, conversas que, segundo acabou confessando, se prolongaram até muito tempo durante a campanha eleitoral, o que transformou essas tentativas em material a ser analisado pela investigação de Mueller.

Hoje, um dos advogados do presidente Trump para este caso é também uma criatura 100% nova-iorquina: Rudy Giuliani, prefeito da cidade no 11 de Setembro, e muito antes disso, quando era procurador em Manhattan, justamente o homem que processou o gângster Salerno, entre outros crimes, pelo fornecimento de concreto. O drama cotidiano de Washington é protagonizado por velhos conhecidos.

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