Entre as raízes e o fator Netflix
Os melhores filmes de 2018 tentaram reconstruir as essências desta arte centenária
Em um piso de cerâmica se derrama um balde de água, formando uma poça na qual uma janela é refletida emoldurando um retângulo de céu cortado pelo voo de um avião. Obra impulsionada pela ambição de ser, precisamente, reflexo da pura vida, com seus acasos e ambiguidades, Roma, de Alfonso Cuarón, começa com essa imagem que encontra o êxtase no cotidiano. Rejeitado pelo Festival de Cannes depois das pressões exercidas pelos exibidores franceses, hostis a que uma produção sem exibição garantida nas salas competisse no templo da cinefilia, Roma levou o Leão de Ouro em Veneza, embora isso não tenha feito diminuir a discussão em torno das novas regras do jogo impostas pelas novas plataformas de produção e difusão. Tanto a vocação épica do filme quanto sua linguagem formal, baseada em elaborados planos gerais em continuidade com ações simultâneas e uma infinidade de elementos significantes, exigem, quase aos gritos, sua projeção em uma enorme tela digna dos tempos em que as salas eram palácios (ou catedrais) do cinema, longe dos multiplexes de bolso. Paradoxalmente, foi a Netflix –que, no fundo, pouco se importa se o consumidor vê Roma na tela do seu celular– que ofereceu ao diretor mexicano as melhores condições de produção para não comprometer sua visão pessoal.
FILMES ESTRANGEIROS EM DESTAQUE
1. Lazzaro Feliz, de Alice Rohrwacher
2. O Outro Lado do Vento, de Orson Welles
3. Hereditário, de Ari Aster
4. Roma, de Alfonso Cuarón
5. Trama Fantasma, de Paul Thomas Anderson
O que volta a estar sobre a mesa é a mesma pergunta feita por André Bazin no final da década de cinquenta: o que é o cinema? Os cineastas –e também os executivos da Netflix– parecem ter claro que a resposta não tem tanto a ver com um espaço –onde se aprecia o cinema?–, mas com uma linguagem. Talvez por isso 2018 foi um ano cinematográfico em que houve um exagero nas essências desta arte centenária que, felizmente, reagiu rapidamente para se diferenciar desse novo modelo de afetação audiovisual que, de forma cada vez mais evidente, encarna o grosso de uma nova ficção televisiva reformulada como garantia de excelência. Cuarón faz uma dupla viagem às raízes (às dele e às do próprio cinema) para defender uma nova arte do real, mesmo que para isso entre em uma clara contradição de termos: pode-se preservar a ética neorrealista dentro de um aparatoso exercício de estilo onde impera mais o controle do que o acaso? A imagem que abre o filme teria sido possível sem a grande lista de técnicos de efeitos digitais que aparece nos créditos?
Roma não foi o único filme notável do ano que olhou para trás, tentando reconstruir a memória de um cinema perdido: em Lazzaro Feliz, Alice Rohrwacher ressuscitou literalmente o espírito de um cinema italiano que partiu do tangível para alcançar o intangível (o espiritual, o devaneio) com Pasolini e Olmi como figuras tutelares; enquanto em Trama Fantasma Paul Thomas Anderson dissecou a figura do gênio como uma entidade patológica, costurando suas imagens com o mesmo perfeccionismo artesanal que definia seu protagonista. Rodados respectivamente em 16 e 35 milímetros, os filmes de Rohrwacher e Anderson aplicam seu gesto essencialista à própria materialidade do celuloide em tempos de hipervisibilidade digital.
A Netflix também está por trás do grande acontecimento cinematográfico do ano, igualmente marcado pela polêmica: a reconstrução do filme inacabado de Orson Welles O Outro Lado do Vento, que poderia muito bem encarnar outra posição essencialista de sinal oposto, posição daqueles que consideram a montagem –e não a temporalidade– o que define a identidade do cinema. O Outro Lado do Vento se parece mais com as fascinantes ruínas de uma obra (im)possível do que com um discurso fechado, mas seu barroquismo expressivo e sua narrativa quase cubista presidem o pódio das poéticas do artifício num ano em que alguns gêneros populares como o terror, a ficção científica e os filmes de super-heróis se deixaram agradavelmente intoxicar pela pós-modernidade, como demonstraram Climax, de Gaspar Noé; Hereditário, de Ari Aster; Suspiria, de Luca Guadagnino; Mandy, de Panos Cosmatos; Jogador nº1, de Steven Spielberg, e Homem-Aranha: No Universo Aranha, de Persichetti, Ramsey e Rothman.
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