Escolha entre China ou EUA é falso dilema
Na queda de braço entre Washington e Pequim, escolher um lado traz riscos para o Brasil
Todas as vezes em que altos funcionários do governo Trump visitaram a América Latina neste ano, trouxeram praticamente a mesma mensagem. Em fevereiro, Rex Tillerson, então chanceler dos EUA, alertou sobre a ascensão da China e argumentou que a região “não precisava de novas potências imperiais”. Em agosto, James Mattis, secretário de Defesa dos EUA, advertiu o Brasil contra a estratégia econômica "predatória” chinesa. Dois meses depois, o vice-presidente americano, Mike Pence, acusou o gigante asiático de pressionar vários governos centro-americanos a cortar relações diplomáticas com Taiwan e reconhecer Pequim. Ele também apontou a China como um dos responsáveis pela crise na Venezuela, por ter oferecido empréstimos questionáveis, apesar da catástrofe humanitária no país.
Embora algumas dessas críticas se justifiquem, é notável como a estratégia diplomática chinesa na América Latina está, hoje em dia, muito mais sofisticada do que a dos Estados Unidos. Enquanto os chineses falam em aumentar o comércio e o investimento, os EUA se comportam como "um ex-namorado ciumento", declarou, em off, um diplomata centro-americano na semana passada: "Eles só falam da China".
De fato, embora a crescente influência chinesa na região traga riscos — além de oportunidades —, esses constantes alertas dos EUA aos governos latino-americanas são contraproducentes. Enquanto os políticos do governo norte-americano, que visitam a América Latina, soem como um disco de vinil arranhado ("Cuidado com os chineses!"), diplomatas chineses evitam dar conselhos públicos a políticos latino-americanos sobre qual estratégia adotar. “A América Latina pode ter ótimas relações com todos”, me disse um embaixador chinês recentemente. Vários diplomatas americanos admitem que advertências públicas são vistas como arrogantes. A decisão do governo dos EUA de criticar a República Dominicana, El Salvador e o Panamá pelas decisões desses países de não mais reconhecer Taiwan e estabelecer laços formais com Pequim fez com que Washington parecesse uma potência decadente, nostálgica de um mundo que não existe mais. Sua diplomacia erra ao pedir aos latino-americanos que escolham entre Washington e Pequim — um pedido que até Bolsonaro e seu chanceler Ernesto Araújo, admiradores de Trump, se mostrariam sábios ao rejeitar. Seria arriscado e, acima de tudo, desnecessário, escolher lados na rivalidade cada vez mais acirrada entre China e EUA.
Afinal, as advertências dos Estados Unidos não levam em consideração os amplos benefícios que os investimentos chineses podem trazer à América Latina, como modernizar a infraestrutura da região e ajudar a impulsionar o desenvolvimento. Atualmente, bancos chineses emprestam mais para projetos de infraestrutura na América Latina do que todos os outros bancos multilaterais juntos, incluindo o Banco Mundial. Nos últimos cinco anos (2013-2017), o Banco de Desenvolvimento da China (CDB na sigla em inglês) contribuiu com quase 55,8 bilhões de dólares em empréstimos para empresas e governos latino-americanos. Em 2015, o CDB socorreu a Petrobras com um empréstimo de 3,5 bilhões de dólares. O comércio entre a América Latina e a China se multiplicou dezoito vezes desde o ano 2000.
A eleição de Bolsonaro é um teste para a diplomacia chinesa na América Latina. Apesar das manifestações de simpatia a Trump e da frequente retórica anti-China presentes na campanha, o pragmatismo econômico de Mourão e Guedes deverá prevalecer no Governo eleito. Eles sabem que a economia do Brasil nunca foi tão dependente da China quanto hoje. A metade das exportações de matérias primas e mais de um quarto das exportações totais do Brasil têm a China como destino, e a importância do país asiático deve aumentar ainda mais. Por outro lado, o valor total das importações de produtos brasileiros pelos Estados Unidos representa menos da metade do que os chineses importam do Brasil.
Os laços China-Brasil se fortaleceram ainda mais como consequência da guerra comercial de Trump contra a China — um cenário que podemos considerar como “novo normal”. Ao contrário do que alguns dos assessores do presidente eleito, como Eduardo Bolsonaro, acreditam, essa situação não resulta de escolhas ideológicas, mas reflete uma nova realidade global. Mauricio Macri, o presidente da Argentina, já compreendeu isso. Seu desejo de fortalecer relações com Trump não o impediu de assinar, na semana passada, 30 novos acordos de investimento chinês e a expansão do intercâmbio de divisas, conhecidos como swap, por 60 bilhões de iuanes (quase 9 bilhões de dólares).
A América Latina ainda não é oficialmente parte da iniciativa chinesa "Um Cinturão, Uma Rota", enorme programa global de financiamento de infraestrutura de centenas de bilhões de dólares conhecido pelas suas siglas em inglês "BRI", que já está transformando a Ásia e partes da África e do Oriente Médio. É provável que a China convide, em breve, a América Latina a integrar o “Plano Marshall Chinês do século XXI”. Nesse cenário, mesmo um namoro intenso entre Brasília e Washington — como imaginado por Bolsonaro e seu ministro de Relações Exteriores — não pode impedir o Brasil de aproveitar da crescente presença chinesa na América Latina. A melhor saída talvez seja uma relação aberta. Sem ciúmes. Para os chineses, ao que tudo indica, estaria tudo bem.
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