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O perigo de ser negro e morrer vendo TV em casa

Um jovem afro-americano morreu em setembro atingido por tiros de uma policial que se enganou de apartamento e acreditou que havia um intruso em sua casa. O fato desconcertante reaviva o mal-estar no país pelo viés racial

Amanda Mars
A mãe de Botham Jean abraça ao embaixador de Santa Luzia em EUA, Anton Edmunds.
A mãe de Botham Jean abraça ao embaixador de Santa Luzia em EUA, Anton Edmunds.AP
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No dia em que morreu a tiros, Botham S. Jean, de 26 anos, saiu da sede da consultoria PwC em Dallas, onde trabalhava como analista, e foi para casa ver um jogo de futebol americano. Morava no South Side Flats, um conjunto residencial perto do centro, de construção recente, com uma pequena piscina no pátio e uma área para churrasco. Seu apartamento, que ficava no quarto andar, era o número 1.478, um detalhe que não teria nenhuma importância não fosse porque no 1378, exatamente abaixo, residia a agente Amber R. Guyger. Em 16 de setembro, Guyger, de 30 anos e branca, entrou na casa do vizinho e o matou. Havia se enganado de apartamento, segundo a versão que deu à polícia, e achou que Jean, negro, era um intruso. A porta estava meio aberta, disse, por isso pôde entrar, viu uma silhueta e, depois de lhe dar várias ordens, sem que ele fizesse caso –declarou a mulher–, pegou a pistola, disparou duas vezes e acabou com o homem desarmado.

"Não teria acontecido assim se Jean fosse branco. Mesmo comprando a sua versão dos acontecimentos, que pensou que fosse seu apartamento e ali encontrou outra pessoa ... sua cultura, a sua experiência, dizem que não pode atirar em um branco e se livrar disso, assim, você dá um passo atrás e pensa, você levar um tempo, olha um pouco mais os móveis, as coisas e diz ... 'esta não é a minha casa’”. S. Lee Merritt, advogado da família de Jean, reflete em seu escritório em Dallas, não muito longe de onde o jovem morreu. Especializado em casos de mortes de afro-americanos nas mãos da polícia, não se lembra de algo tão absurdo como o que aconteceu há quase dois meses.

Praticamente qualquer pessoa à qual se pergunte atualmente em Dallas sobre o caso sabe o que está sendo discutido. E isso considerando que a memória está muito escolada neste pedaço dos EUA. Tem uma história sofrida, com episódios pungentes de violência policial (e também de violência pura), nem é preciso lembrar que é a cidade que viu JFK assassinato. Em meados de 2016, um franco-atirador que "queria matar brancos" tirou a vida de cinco agentes em meio a uma manifestação contra a brutalidade da corporação. Mas a morte de Botham Jean causou um novo tipo de desconcerto e dor.

Botham Jean, em foto de arquivo, falando na universidade.
Botham Jean, em foto de arquivo, falando na universidade.Jeff Montgomery (AP)

Um afro-americano nos Estados Unidos sabe que é arriscado tirar sua carta do porta-luvas sem permissão durante uma blitz da polícia no trânsito. O policial pode acreditar que ele procura uma arma, e o matar. Uma série de vídeos de mortes semelhantes comprova isso. Mas, nos últimos meses, os negros têm despertado suspeitas de modos muito mais inesperados. Em junho, uma mulher de Ohio ligou para a polícia porque viu quatro crianças negras cortando a grama perto de sua casa (o vizinho as contratou e, sem querer, tocaram em parte do jardim da mulher). Uma noite, no final de abril, um ex-funcionário da Casa Branca, um afro-americano, estava se mudando de um apartamento em Manhattan, Nova York, e de repente seis policiais apareceram. Vendo a mudança, um vizinho, em vez de pensar que alguém estava deixando o imóvel, chamou a polícia para uma possível busca por um sujeito que, dizia, poderia estar armado. Na Califórnia, na mesma época, as forças de segurança também pararam três jovens negros que haviam acabado de sair de um apartamento turístico após o alerta de uma mulher branca preocupada.

Teriam feito essas ligações para a polícia se os protagonistas desses episódios fossem crianças, jovens ou homens brancos? Jean inaugurou, para muitos em Dallas, um novo perigo para um afro-americano: estar em casa vendo TV.

Merritt hesita em responder se, sob o Governo Trump, as coisas pioraram para os negros. "Sim e não", diz ele. Por um lado, a brutalidade policial é algo muito antigo. Quando ele era criança, na Califórnia, Rodney King foi espancado até a morte, no que provavelmente foi o primeiro vídeo viral desse tipo na história. E no célebre discurso de Martin Luther King há meio século, o I Have a Dream, ele "mencionava a violência policial mais vezes do que a segregação, era um problema na época e é agora", diz. No entanto, vê mudanças com Trump. "Não é apenas a retórica de um presidente que diz aos agentes que quer que sejam duros, mas as políticas, já que estão recebendo mais equipamentos militares", acrescenta.

A taxa de popularidade de Trump entre a população negra está no subsolo. De acordo com os dados do Gallup, o instituto de pesquisas mais comum na avaliação dos presidentes, apenas 13% o aprovam, bem abaixo dos 20% de latinos (a aprovação alcança 55% entre os brancos). A taxa de desemprego para os afro-americanos chegou neste ano a seu menor nível desde que há registos (1972), abaixo de 7%, mas o bom desempenho da economia não é tão decisivo para um grupo que, depois dos protestos de 2017 em Charlottesville, viu seu presidente equiparar grupos neonazistas aos ativistas contra o racismo

A população negra detesta Trump (88% votou em Hillary Clinton em 2016), mas a queda na mobilização na eleição presidencial foi decisiva para a vitória de Trump contra a democrata: a sua participação caiu sete pontos e ficou no nível mais baixo dos últimos 20 anos, 59%. Barack Obama, o primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos, conseguiu despertar um entusiasmo que não foi reeditado com Clinton.

É uma incógnita o que vai acontecer em 6 de novembro, nas eleições legislativas, que costumam ter menos eleitores do que as presidenciais.

Há um problema, endêmico, que os afro-americanos não veem mudar: o estigma. Tony Wood, um motorista afro-americano de Dallas, estava fazendo uma reflexão crua na terça-feira ao pensar em Jean. "O estereótipo é o que nos fere, sentimos, eu mesmo, se vejo um negro, posso sentir mais dúvidas, mais perigo." O advogado da família Jean explica que ele, muito consciente do viés com que um garoto negro é julgado, costumava ser muito cuidadoso ao se arrumar, sempre usava camisas dentro das calças e evitava a todo custo os casacos esportivos com capuz. A agente Amber Guyger foi presa dias depois do crime por homicídio imprudente, mas os advogados da família de Jean acreditam que é um assassinato. Os pais do jovem, diz Merritt, não conseguem se recuperar da desgraça.

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