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“Acusaram o PT de imitar a Venezuela, mas é Bolsonaro quem se espelha no processo de lá”

Maria Hermínia Tavares, pesquisadora do CEBRAP, diz que Bolsonaro é o risco do chavismo com o sinal inverso. Para ela, Haddad precisa “tirar a camisa vermelha e colocar a branca da conciliação”

Felipe Betim

O primeiro turno das eleições brasileiras de 2018 materializou a indignação de um país farto de seus dirigentes políticos, incapazes de dar resposta ao tema da corrupção e questões cotidianas, como a segurança pública. O resultado não foi apenas a ascensão da extrema direita e de Jair Bolsonaro (PSL), que foi para o segundo turno dos comícios eleitorais com 46% contra Fernando Haddad (PT), que ficou com quase 30%, mas também "a implosão de um sistema apoiado na Constituição de 88 desde 1994". A avaliação é de Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora titular de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP)  e pesquisadora Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).

Maria Herminia Tavares de Almeida.
Maria Herminia Tavares de Almeida.USP Imagens
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A cientista política se apoia no fato de que o PSL de Bolsonaro conseguiu a segunda maior bancada da Câmara, com mais de 50 deputados, apesar de não possuir estrutura partidária nem dinheiro. Ao mesmo tempo, importantes lideranças, como os senadores Romero Jucá e o Eunício de Oliveira, entre outras, não renovaram seus mandatos, enquanto que novatos na política chegaram ao segundo turno em Minas Gerais e no Rio de Janeiro.

Trata-se de uma onda conservadora difícil de conter, uma vez que, segundo diz, "a racionalidade não é um dique forte" contra ela. Para Haddad, resta percorrer um caminho que passa por deixar seu padrinho político de lado e assumir o papel central. "Tem que deixar de ir para Curitiba, porque isso o enfraquece enormemente. Um candidato a Presidente da República não pode ser visto como alguém que vai perguntar o que tem de fazer para um líder que está preso". Apesar não conseguir definir exatamente como seria um governo Bolsonaro, ela vislumbra um processo parecido ao que aconteceu na Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro: "O maior risco é um governo civil autoritário com apoio militar. O que está acontecendo no mundo vai nessa direção".

Pergunta. Como chegamos até aqui?

Resposta. É um caminho longo. Começa em 2013 com as enormes manifestações espontâneas para as quais os dois partidos que organizavam a disputa eleitoral, PT e PSDB, foram incapazes de dar uma resposta. Isso passou por 2014, onde a radicalização dos dois grupos aumentou muito. Passou pelo impeachment e pelas manifestações do impeachment. Sempre tivemos uma disputa entre centro esquerda e centro direita. É uma bobagem dizer que o PT é de extrema esquerda. Mas tem um tema que os dois principais partidos não sabem lidar, que é a corrupção.

P. PT, PSDB e o sistema político como um todo se blindaram das ruas. Isso gerou uma raiva ainda maior?

R. Acho que sim. O PT passou esse tempo negando o seu envolvimento com atos importantes, mas o PSDB também. Os dois leram mal o que estava acontecendo na sociedade, que está mais atenta a esse tipo de questão e que foi tratada forma bastante intensa pelos meios de comunicação, e depois, pela candidatura de extrema direita [de Bolsonaro]. A dimensão da corrupção foi muito grande, mas a maneira como foi tratada também criou essa ideia de que é o principal problema do país. Quando não é, né? O país tem coisas muito graves a se resolver, apesar de a corrupção ser algo grave. Essa ideia de que as coisas não acontecem porque o governo é corrupto... A mídia teve um papel fundamental nisso. Eu não estou demonizando a mídia, tem que divulgar e contar a história, mas nos momentos de abertura das acusações, o Jornal Nacional ocupava uma hora com esse assunto, mostrando um cano do qual saía o dinheiro... Era muito impactante. Não acho que a corrupção foi inventada pela mídia: ela existia, é muito grave e não pode acontecer. Mas ela se transformou na cabeça de muita gente como algo associada ao PT e, depois, ao PSDB. O que nós estamos assistindo é a implosão de um sistema apoiado na Constituição de 88 desde 94.

P. Que dimensão tem isso? Não só Bolsonaro foi para o segundo turno como também o PSL tornou-se o segundo maior partido da Câmara.

R. É uma mudança muito importante no sistema político. Revela o fato de como o PT e o PSDB não souberam lidar com o tema da corrupção, também não souberam lidar com o tema da segurança. Isso acabou se transformando num discurso da extrema direita. Mas Bolsonaro é quase uma tela em branco, porque ele não diz nada. Ele diz uma meia dúzia de chavões. Tem algo vagamente nacionalista e antissistema. Os diversos grupos da sociedade que votaram nele foram projetando... Ele dá um marco de extrema direita.

P. Mas agora ele vai ter que ir aos debates com Fernando Haddad, vai ter mais tempo de televisão... Em suma, terá de falar mais. É um desafio para a campanha dele?

R. Veremos se isso tem um efeito importante. O que estamos assistindo é uma onda. E, às vezes, a racionalidade não é um dique forte pra conter essa onda. Então, eu espero, como brasileira, que ela possa ser contida. Ela é muita maléfica para o país.

P. O que o PT e o Haddad precisam fazer para conter essa onda?

R. Haddad já acenou com a ideia de que vai trazer outros candidatos e fazer uma espécie de frente pela democracia, trazendo o centro junto. Mas tem coisas difíceis que ele terá que fazer. Tem que deixar de ir para Curitiba, porque isso o enfraquece enormemente. Um candidato a Presidente da República não pode ser visto como alguém que vai perguntar o que tem de fazer para um líder que está preso. A segunda coisa é tirar a camisa vermelha e colocar a camisa branca da conciliação, da paz, da negociação. Vai ter que lidar com grupos dentro do PT que não entendem qual é a situação. Ele vai ter que mudar o seu programa econômico, mas não é isso que vai decidir agora a eleição. Seria bom que ele acenasse agora para não parecer que deu um cavalo de pau depois. Mas a minha sensação é que o PT, quando fez aquele programa, estava se preparando para perder as eleições para o [Geraldo] Alckmin. E aí fizeram um programa pra cerrar fileiras e juntar a militância, porque ele é inviável. Se você conversa com petistas mais esclarecidos, eles dizem que não dá, que tem que fazer reforma da Previdência e coisas do tipo. Então, há vários movimentos complicados que ele terá de fazer. Vai ter que trazer o Fernando Henrique Cardoso para dentro. Ele não tem mais poder dentro do PSDB, mas tem uma liderança moral importante no país.

P. Caso o PT, ao invés de ter esvaziado a candidatura do Ciro Gomes, tivesse se aliado a ele desde o começo, quais seriam as chances de neutralizar desde já a candidatura Bolsonaro?

R. Basta somar os votos. O Ciro conseguiu quase 12%, é bastante. Agora, para trazer o Ciro, terão de fazer grandes concessões, não só de agenda mas também de espaço dentro do governo caso o PT ganhe.

P. E caso Bolsonaro ganhe? É possível vislumbrar o que seria um governo dele?

R. Não tenho nenhuma condição prever. Na melhor das hipóteses ele vira um governo Collor. Na melhor. Mas não é isso o que ele está fazendo. Ele está formando uma base parlamentar significativa. Ele pode ter maioria no Congresso para fazer coisas muito danosas para o país. Acho muito difícil saber e acho melhor não pagar para ver (risos).

P. O Exército vem pairando em cima da política brasileira e também das eleições, com ameaças veladas, uma movimentação do Toffoli em direção a instituição... Devemos temer algum tipo de intervenção ou interferência do Exército?

R. Os apoiadores de Bolsonaro por enquanto são generais de pijama. Não sabemos como a instituição e a hierarquia vão atuar. Mas é lógico que, caso se forme uma situação de muita instabilidade, existe o risco sim do Exército atuar. Mas o maior risco é um governo civil autoritário com apoio militar. O que está acontecendo no mundo vai nessa direção. Como foi na Venezuela, inclusive. Acusaram muito o PT de querer imitar a Venezuela, mas é o Bolsonaro que está espelhando esse processo que aconteceu lá, onde o sistema tradicional, fundado na corrupção, ruiu. E apareceu uma liderança fora do sistema que foi destruindo a democracia. Se tem algo parecido ao chavismo, mas com outro sinal, é essa ameaça do Bolsonaro.

P. O PT apostou fortemente em manter o discurso da perseguição contra o partido e manter a candidatura de Lula até o último momento. Essa estratégia acabou se virando contra ele?

R. O que está claro é que a expectativa de que a transferência de votos fosse grande não se materializou. Lógico que ela aconteceu, Haddad não era conhecido por ninguém, e o fato de ser apoiado por Lula facilitou sua entrada. Mas isso ocorreu onde o PT tinha bases fortes e seguras. As pesquisas sobre identificação com partidos (que não sabemos exatamente o que significam, mas indicam uma tendência) mostram que cerca de 20 e poucos por cento da população apoiam o PT. É o único que tem esse apoio em escala nacional. E foi mais ou menos o que Haddad teve de votação. A votação do Lula é muito acima disso. E nem sei o que aconteceria com o Lula se ele fosse candidato.

P. O PT terá de fazer um mea culpa e pedir desculpas pela corrupção que cometeu?

R. O partido estava numa situação muito complicada, com seu principal líder na cadeia a partir de um processo controverso na maneira como foi conduzida. Essa coisa de prender depois da segunda instancia também é controverso. Ele foi submetido a processos que dão espaços para a narrativa da perseguição. Nesse contexto, é muito difícil pedir pro PT admitir que fez mesmo tudo aqui. Ele estava numa situação complicada. Mas vai ter que fazer [um mea culpa]. Não sei se durante a campanha eleitoral ou depois, mas tem que fazer. E, sobretudo, tem que acabar internamente com esses procedimentos [de corrupção].

Agora, o eleitorado puniu muito fortemente não só o PT, mas o sistema como um todo. Lideranças muito importantes ficaram de fora, como os senadores Romero Jucá e o Eunício de Oliveira. Entraram candidatos de fora do sistema, entre aspas. No Rio, o [ex-juiz-federal] Wilson Witzel tá disputando. Em Minas, Antonio Anastasia (PSDB) dava sinais de que iria se eleger tranquilamente. A rejeição ao arranjo politico anterior é enorme. Como as lideranças políticas de centro, de centro esquerda e centro direita não se deram conta do tamanho disso, Bolsonaro acabou canalizando melhor [essa insatisfação].

P. Qual é o papel do PSDB nesse processo? O que prejudicou o partido? Tem a ver com o fato de ter questionado o resultado das urnas em 2014 e, depois, ter participado do impeachment, como dizem alguns analistas?

R. Eles fizeram a crise politica. Eles aprofundaram a crise, é uma responsabilidade muito grande. O grande derrotado do impeachment é o PSDB, que deu viabilidade ao processo. Sem ele não se teria conseguido fazer. Mas a centro direita se fragmentou e o PSDB se enfraqueceu demais. Se a vitória em São Paulo não se materializar, ele perde uma força importante. Ele perdeu espaço para a extrema direita e é o grande perdedor do impeachment. Ele imaginava que com o impeachment teria benefícios, mas fez um cálculo equivocado. A crise politica se acirrou muito com o processo.

P. O PSDB  fez acordo com o centrão, conseguiu o maior tempo de TV... Parecia se blindar contra Bolsonaro, mas isso também não funcionou.

R. Eles acharam que o jogo ia ser o mesmo de sempre. Era o cálculo que todos faziam nas eleições anteriores. E agora um cidadão que tinha poucos segundos na TV teve um sucesso impressionante. Por outro lado, o horário eleitoral funcionou muito bem para o Haddad. Sua votação não veio com rede social.

P. Acredita que Bolsonaro entendeu melhor o mal estar que veio à tona em 2013?

R. Não sei se entendeu, porque ele pensa aquela meia dúzia de coisas simples e erradas. Se o problema da segurança se resolvesse matando as pessoas, o Brasil não teria problemas de segurança, porque aqui a polícia mata com muita tranquilidade. E ele não tem nada a dizer sobre outras coisas. Mas ele expressa de maneira muito sintética a rejeição a isso tudo, a esse sistema que se afundou. Ele canalizou aquele sentimento.

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