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Crítica | 'Guerra Fria'
Crítica
Género de opinião que descreve, elogia ou censura, totalmente ou em parte, uma obra cultural ou de entretenimento. Deve sempre ser escrita por um expert na matéria

‘Guerra Fria’: A beleza dos amores difíceis

Pawel Pawlikowski tem a capacidade de criar imagens inesquecíveis. Filme recebeu três indicações ao Oscar 2019 e estreou no Brasil nesta quinta-feira

Carlos Boyero

É uma sensação mágica e, portanto, rara. Acontece quando certos filmes terminam. É impossível sair da sala antes da exibição do último crédito, você flutua, está comovido, a história que te contaram te impregna, aqueles personagens, aquelas imagens, aqueles sons vão te acompanhar durante muito tempo, é um prazer íntimo e solitário, você só poderia compartilhá-lo com alguém muito próximo ou muito cúmplice. Isso me aconteceu com Ida, o filme anterior de um polonês singular chamado Pawel Pawlikowski, um diretor que parece de outro tempo, de um cinema maravilhoso preto e branco, sugestivo até a dor, misterioso, sutil.

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Fiquei tão impressionado com aquela noviça em um convento de clausura que sai ao mundo para descobrir o horror com que sua autêntica e desconhecida família foi esmagada, aquela juíza lendária por sua implacável caça às bruxas durante o stalinismo, desesperada, alcoólatra, promíscua, cínica, que, sem barulho ou implorar piedade se joga um dia pela janela, a atmosfera desprendida em cada cenário e cada plano, o que me fazia esperar com ansiedade (mas também um pouco de medo) seu próximo filme.

Chama-se Guerra Fria e é outra obra-prima. Pawlikowski retorna ao passado, a um tempo asfixiante e repressor na Polônia do pós-guerra para narrar um amor tão doloroso quanto vulcânico, ao qual as circunstâncias impõem o nem com você nem sem você, e que se desenrola entre 1949 e 1964. Ele é um músico contratado pelo Governo para adaptar o folclore ancestral e primitivo (produto de sofrimento e humilhação, mas que também proporcionava alegria, conta alguém) à vitória do proletariado, à reforma agrária e à glorificação do timoneiro Stalin. Ela canta e dança, é naturalmente voluptuosa, tentou matar o pai porque certa vez a confundiu com sua mãe, queria seguir uma carreira.

São dois instintos profissionais de sobrevivência em tempos difíceis. Ele vai exilar-se e levará a vida tocando piano em Paris. Ela se consolidará em sua arte representando a essência da alma eslava a serviço do novo mundo imposto por Moscou. E ambos terão amantes, companheiros, ligações, mas continuarão a sonhar com seus encontros furtivos, com algo tão impossível quanto a continuidade, o futuro juntos, a manutenção da plenitude. E haverá brigas, ciúmes, loucura, desolação. Também a certeza de que a vida não vale nada se não podem ficar juntos.

Desde o insólito início, mostrando os cantos e os exóticos instrumentos musicais da tradição mais remota até, em um dos desenlaces mais bonitos, românticos e trágicos que vi no cinema, este filme é imprevisível, poderoso, lírico, complexo e veraz. A habilidade do diretor para criar imagens inesquecíveis, recriar ambientes, expressar sensações com olhares, tons de voz e pequenos gestos, fazer você viver a música (desde as canções populares ao jazz, do rock à música clássica), a direção de atores e atrizes, tem a marca do classicismo.

E o classicismo serve para transmitir emoções universais, retratar um mundo sem que nada falte ou sobre, sentir como algo seu o que acontece com personagens fictícios. Pawlikowski dedica Guerra Fria a seus pais e deu a entender que em seu argumento há muitas coisas que se ajustam à vida real das pessoas que o geraram. Quero pensar que se sentiriam comovidas pela beleza, a paixão e a tristeza que o filme de seu filho desprende.

Guerra Fria recebeu três indicações ao Oscar 2019 e estreou no Brasil nesta quinta-feira, 7 de fevereiro. 

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