‘Guerra Fria’: A beleza dos amores difíceis
Pawel Pawlikowski tem a capacidade de criar imagens inesquecíveis. Filme recebeu três indicações ao Oscar 2019 e estreou no Brasil nesta quinta-feira
É uma sensação mágica e, portanto, rara. Acontece quando certos filmes terminam. É impossível sair da sala antes da exibição do último crédito, você flutua, está comovido, a história que te contaram te impregna, aqueles personagens, aquelas imagens, aqueles sons vão te acompanhar durante muito tempo, é um prazer íntimo e solitário, você só poderia compartilhá-lo com alguém muito próximo ou muito cúmplice. Isso me aconteceu com Ida, o filme anterior de um polonês singular chamado Pawel Pawlikowski, um diretor que parece de outro tempo, de um cinema maravilhoso preto e branco, sugestivo até a dor, misterioso, sutil.
Fiquei tão impressionado com aquela noviça em um convento de clausura que sai ao mundo para descobrir o horror com que sua autêntica e desconhecida família foi esmagada, aquela juíza lendária por sua implacável caça às bruxas durante o stalinismo, desesperada, alcoólatra, promíscua, cínica, que, sem barulho ou implorar piedade se joga um dia pela janela, a atmosfera desprendida em cada cenário e cada plano, o que me fazia esperar com ansiedade (mas também um pouco de medo) seu próximo filme.
Chama-se Guerra Fria e é outra obra-prima. Pawlikowski retorna ao passado, a um tempo asfixiante e repressor na Polônia do pós-guerra para narrar um amor tão doloroso quanto vulcânico, ao qual as circunstâncias impõem o nem com você nem sem você, e que se desenrola entre 1949 e 1964. Ele é um músico contratado pelo Governo para adaptar o folclore ancestral e primitivo (produto de sofrimento e humilhação, mas que também proporcionava alegria, conta alguém) à vitória do proletariado, à reforma agrária e à glorificação do timoneiro Stalin. Ela canta e dança, é naturalmente voluptuosa, tentou matar o pai porque certa vez a confundiu com sua mãe, queria seguir uma carreira.
São dois instintos profissionais de sobrevivência em tempos difíceis. Ele vai exilar-se e levará a vida tocando piano em Paris. Ela se consolidará em sua arte representando a essência da alma eslava a serviço do novo mundo imposto por Moscou. E ambos terão amantes, companheiros, ligações, mas continuarão a sonhar com seus encontros furtivos, com algo tão impossível quanto a continuidade, o futuro juntos, a manutenção da plenitude. E haverá brigas, ciúmes, loucura, desolação. Também a certeza de que a vida não vale nada se não podem ficar juntos.
Desde o insólito início, mostrando os cantos e os exóticos instrumentos musicais da tradição mais remota até, em um dos desenlaces mais bonitos, românticos e trágicos que vi no cinema, este filme é imprevisível, poderoso, lírico, complexo e veraz. A habilidade do diretor para criar imagens inesquecíveis, recriar ambientes, expressar sensações com olhares, tons de voz e pequenos gestos, fazer você viver a música (desde as canções populares ao jazz, do rock à música clássica), a direção de atores e atrizes, tem a marca do classicismo.
E o classicismo serve para transmitir emoções universais, retratar um mundo sem que nada falte ou sobre, sentir como algo seu o que acontece com personagens fictícios. Pawlikowski dedica Guerra Fria a seus pais e deu a entender que em seu argumento há muitas coisas que se ajustam à vida real das pessoas que o geraram. Quero pensar que se sentiriam comovidas pela beleza, a paixão e a tristeza que o filme de seu filho desprende.
Guerra Fria recebeu três indicações ao Oscar 2019 e estreou no Brasil nesta quinta-feira, 7 de fevereiro.
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