Cápsulas do tempo
Artista Yuri Firmeza publica textos inéditos no EL PAÍS, em intervenção parte da exposição Arte-Veículo, que estreia no Sesc Pompeia na terça, 28
Quando os artistas usam e ocupam a mídia de massa. Com essa premissa, a crítica, pesquisadora e curadora Ana Maria Maia selecionou 47 nomes para a exposição Arte-Veículo, que estreia no Sesc Pompeia, em São Paulo, na terça-feira. A mostra disseca resultados da relação, da TV à Internet e às redes sociais, nos últimos 60 anos, com obras de Cildo Meirelles, Lenora de Barros e Nuno Ramos, entre outros. Como parte da programação, há novas intervenções de artistas na mídia, incluindo uma inserção no site do EL PAÍS.
Leia abaixo o texto inédito de Yuri Firmeza. O artista publicará mensalmente no site enquanto a exposição estiver em cartaz, justapondo suas reflexões atuais com suas colaborações para o jornal O Estado de Minas (quadro ao final) na década passada. Arte-Veículo poderá ser visitada até 2/8/2018.
Durante o período de escavações arqueológicas — naquele Rio de Janeiro pré-eventos esportivos — muitas cápsulas do tempo foram descobertas. Encerravam-se dentro delas objetos como cartas, moedas, utensílios pessoais. O mais interessante dos documentos enterrados mantinha-se, por um lado, como testemunho de tempos remotos e, por outro, prenúncio de um futuro-agora.
E dizia “Vossa Alteza (…) diante da colossal magnitude Imperial (…) aos traços desta terra reinará a pujante promessa como força de um solo abençoado (…) e de um povo bravio cujo horizonte, embora turvo, é redentor (…) para a melhor exploração desta terra desmesurada, cujos obreiros dos tempos vindouros (…) Vossa Alteza…”. Curiosamente, a carta mencionava, em diversas passagens, uma outra carta; a saber, a carta de Pero Vaz de Caminha, citando fielmente o documento original, “… monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz! (…) Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas…”.
Em outra cidade brasileira, Alcântara, no Maranhão, as cápsulas do tempo dizem sobre o período colonial brasileiro a partir de um desvio de futuro. É igualmente em uma carta — esta de difícil legibilidade, visto que mais se assemelha a um pergaminho com sobreposições de textos — que parte de uma certa narrativa se constrói. A carta descreve a rivalidade da aristocracia de Alcântara, acentuada após a notícia de que o então imperador D. Pedro II visitaria a cidade. Nenhum trecho, como era de se esperar, trata da brutal escravidão que ocorreu em Alcântara; o que nos leva a crer que a cápsula do tempo continua a apresentar a perspectiva dos vencedores. Em uma passagem é possível lermos: “… o Barão de Pindaré e o Barão de Mearim ergueram opíparos palacetes (…) a rivalidade (ou autoridade, difícil compreensão textual nessa passagem da carta) fracassou, em termos (…) Dom Pedro II, até o presente momento, não aportou por estas terras…”. Evidentemente, hoje sabemos que as ruínas de Alcântara resultam da espera deste futuro que, como Fata Morgana ou Godot, não vem. Vale lembrar que já naquele tempo o Centro de Lançamento de Alcântara era negociado com o governo norte-americano. Negociação que recentemente foi retomada de forma controversa após visita de Temer ao Centro de Lançamento. Tempos antes, não mais uma carta, mas telegramas que vazaram através do Wikileaks, confirmaram que houve, sim, sabotagem dos Estados Unidos contra o Centro de Lançamento de Alcântara e, portanto, contra as pesquisas tecnológicas-aeroespaciais brasileiras.
Alguns anos após a estadia em Alcântara e ciente das cápsulas encontradas no Rio de Janeiro, o secretário das forças de inteligência norte-americanas, em nome da NASA, anuncia a criação de uma nova concepção de cápsula do tempo. A NASA lança uma convocatória: a seleção de 50 textos e 50 imagens de todas as procedências a serem enviados ao espaço, através da cápsula OSIRIS-REx. Neste mesmo ano, recebíamos os Jogos Olímpicos ainda sob a herança agonizante de uma recém Copa do Mundo.
Embora as 50 imagens e 50 textos só venham a ser tornados públicos na próxima década, tempo curto em relação ao propósito das cápsulas, o tom das mensagens, que nos foi apresentado em “termos gerais”, clama por esperança de um futuro melhor e mais justo.
Retomando o interesse na carta encontrada no Rio de Janeiro, o que de imediato interessou-me foram as citações à carta de Pero Vaz de Caminha. O capitão, reiterando a prática de nomear como própria aos “descobridores", batiza o monte alto de O Monte Pascoal, batiza a terra como A Terra de Vera Cruz. Este ato adâmico nos remete diretamente à Gênesis 02-19: "Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todo o animal do campo, e toda a ave dos céus, os trouxe a Adão, para este ver como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome”. O capitão, assim como Adão, nomeia aquilo que supostamente é virgem. A violência do batismo operada pelo capitão é ainda maior, pois que na citação seguinte a carta nos aponta os habitantes daquele monte, daquelas terras. Fincar a bandeira do nome, eis um dos gestos primários do colono.
Mas a carta (…) Retirada de uma cápsula do tempo (…) Na cidade do Rio de Janeiro (…) Durante escavações arqueológicas (…) Que ocorriam devido as truculentas obras do Porto Maravilha (…) Que por sua vez ocorriam por conta de interesses evidentes e escusos motivados pelos Jogos Olímpicos e pela Copa do Mundo… Essa carta apresenta uma série de sentenças que, como dito, prenunciam o futuro-agora não apenas de onde ela foi enterrada, mas de um projeto de “humanidade”.
Estas cartas, telegramas, documentos parecem ter sido escritos por um só indivíduo. Ou por muitos em um só tempo. Não há nada de profético. O pergaminho, majoritariamente ilegível, sobrepõe a carta de Pero Vaz de Caminha aos telegramas tornados públicos na WikiLeaks. As lacunas entre os trechos mais visíveis da carta de Alcântara, são preenchidas pelos fragmentos da carta encontrada no Rio de Janeiro. As cartas enviadas ao espaço, este, por sua vez, já em processo de colonização, se entrelaçam à passagem bíblica. É possível e, sobretudo, é preciso confrontá-las. As palavras parecem estar imantadas, rapidamente se reformulam e parecem nos dizer de outro lugar. São fugazes pois que uma vez mais nos põe, sem desconfiarmos, nos mesmos lugares de evidência de onde pensamos sair. Mas há corpos, cartas, gestos, palavras que, mesmo enterradas ou lançadas ao espaço, ainda cortam e bailam, re-existindo ao emaranhado do tempo. Meticulosamente, demarcam os desvios, as singularidades e desmontam a suposta indiscernibilidade política dos acontecimentos. Uma vez mais, agora, sempre haverá.
Yuri Firmeza é artista e participa da exposição Arte-veículo no Sesc Pompeia.
Projeto de Artes Plásticas quer interagir com a cidade e propõe diálogo com a população de Belo Horizonte
YURI FIRMEZA
Há alguns meses, em Fortaleza, ensaiou-se a discussão, em tom de denúncia, a cerca do roubo e do estado depredado de esculturas instaladas em um parque da cidade.
Ainda que não seja simpatizante das "escolas" que pensam o corpo social por uma perspectiva orgânica – em que cada órgão tem, a priori, sua função preestabelecida e bem definida –, parece-me que a questão do Parque das Esculturas se trata de expulsão dos materiais indigeríveis, da devolução daquilo que não assimilamos.
Estou falando, aqui, do vômito, a máxima recusa. "É o estômago que, como sempre, revela a verdade." Porém, antes de chegar ao estômago, há o ato de engolir e seu predecessor, o ato de mastigar.
E, se o problema é de assimilação, o Parque das Esculturas passa a ser apenas índice de um problema mais abrangente. Algo entalado por conta da mastigação inadequada.
À semelhança de outros – vários – projetos realizados no Brasil, a tentativa fracassada de aproximação entre arte e vida – no caso, a construção do Parque de Esculturas – instaura fosso ainda maior na relação do público com as obras. Efeito contrário ao proposto, inicialmente, pelos idealizadores dos projetos.
O apartheid que vemos no malogro desses projetos aponta não apenas para as lacunas entre as obras e os transeuntes, mas sinaliza, sobretudo, para a distância entre os artistas, a cidade e a população.
É preciso pensar a cidade – toda a complexa rede de relações e forças que a perpassam e lhe são inerentes – antes de pensar a "arte pública".
O problema, talvez provocador desse regurgitar coletivo, é continuar insistindo na tentativa de apaziguar as carências de uma dinâmica cultural por meio de eventos e projetos megalomaníacos que operam apenas como mais um espetáculo entre tantos. Desse modo, a melhor forma de não sofrer indigestão é mastigar as coisas de forma muito consciente. E, para isso, cada pessoa tem um tempo particular. O tem pode reduzir os grandes pedaços a pequenos farelos.
Tenho o meu tempo em Belo Horizonte. Esse tempo tem duração de 13 meses. O tempo da Bolsa Pampulha, projeto do qual estou participando e motivo de minha residência na cidade. Já se passaram alguns consideráveis meses que estou por aqui mastigando, ruminando, engolindo e, esporadicamente, vomitando.
A atual edição da Bolsa Pampulha tem como proposta de seu desfecho não mais uma exposição nas dependências do Museu de Arte da Pampulha: "Cada artista selecionado realizará ação expositiva concomitante ao resultado de seu trabalho, prevista para 2008, em espaços públicos da cidade de Belo Horizonte".
Acredito que o formato de uma bolsa como essa possibilita relação mais intrínseca com a cidade, justamente por apostar nos bastidores, na mastigação e, por esse motivo, difere de eventos que visam simplesmente às luzes dos holofotes ao final do show.
O fato é que, para apresentar o resultado do trabalho desenvolvido ao longo deste ano, em espaços públicos da cidade, como previsto no edital da Bolsa, faz-me necessário um líquido.
O primeiro gole:
Assumir que estou vivo
Pensar minha estadia na cidade como sendo a minha intervenção no espaço público. Criar esse espaço por meio, justamente, das relações que invento com "a cidade". Chegar a Belo Horizonte, amassar e moldar pão de queijo com a Anita, conversar sobre os mexilhões dourados com a bióloga Mônica Campos, dialogar com os motoristas de táxi na tentativa de entender o fluxo da capital,ir ao festival de cinema de Tiradentes, conversar com os travestis da Afonso Pena à procura de alguma Yuri, aprender a tocar flauta, ir a Patos de Minas, conversar sobre meus trabalhos com os alunos da Escola Guignard, escrever diário, andar com mapa no bolso, dar oficinas, seguir carteiros, ir a Lagoa Santa, ziguezaguear no Opala de Pablo, ir às reuniões de condomínio, fazer performances, comer doce de leite, ir ao museu, fazer piquenique no Parque das Mangabeiras, encontrar-me com os outros bolsistas, ir a Ouro Preto, conhecer pessoas na rua, desenhar a cidade, desenhar na cidade, desenhar-me cidade.
O segundo gole:
"A cidade" entre aspas
Enfatizar que a cidade que me interessa pensar não é apenas a cidade literal, física, arquitetônica, maciça. Mas todo o seu contexto – social, político, cultural.
O terceiro gole:
Uma plataforma
Brasis. Fragmentos. Isolamento e falta de diálogo. Dificuldade de interlocução e uma pretensa história da arte. Era uma vez... no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Minha inserção no Pensar pretende criar um dispositivo para a produção de pensamento, conversas, fluxos e circuitos. Tal inserção faz parte do meu diário de experiências cotidianas. A partir de agora, o jornal se configura como plataforma comum para que as conversas reverberem em outros corpos.
O quarto gole:
Uma questão para além da ótica
Belo Horizonte vista por vários prismas, mas, sobretudo, inventada por cada toque. Uma cartografia em constante mutação. Que lugar é este? Para um geógrafo, para um cientista político, para um motorista de ônibus, para um artista "estrangeiro", para pessoas que se movimentam e atuam de forma muito peculiar na cidade, para você.
Sim, Belo Horizonte, essas são algumas abocanhadas; eu não seria capaz de conversar e começar de outra forma. E, caso a conversa fosse outra, as esculturas seriam roubadas, o parque estaria em ruínas, as obras restariam depredadas e o sonho findaria saqueado.
Finalizo este texto com as palavras também finais de Miwon Know, em Um lugar após o outro: anotações sobre site specificity. "Somente essas práticas culturais que têm essa sensibilidade relacional podem tornar encontros locais em compromissos de longa duração e transformar intimidades passageiras em marcas sociais permanentes e irremovíveis – para que a seqüência de lugares que habitamos durante a nossa vida não se torne generalizada em uma serialização indiferenciada, um lugar após o outro."
Este texto é também uma escultura.
"O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos, e não a indivíduos ou à vida; e também que a arte seja um domínio especializado, o domínio dos especialistas, que são os artistas. Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte?
Yuri Firmeza é artista plástico e participa do Programa Bolsa Pampulha, do Museu de Arte da Pampulha (MAP)
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