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Gonzalo Justiniano: “Tem gente que tem medo da memória”

Diretor chileno resgata a lembrança dos anos da ditadura chilena em seu novo longa ‘Cabras de merda’, exibido no 28º Cine Ceará

Cena do filme 'Cabras de medra', de Gonzalo Justiniano.
Cena do filme 'Cabras de medra', de Gonzalo Justiniano.
Marina Rossi
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O bairro de La Victoria, em Santiago do Chile, foi um foco de resistência à ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Ali, viviam famílias desestruturadas pelo regime –crianças sem pais, mães sozinhas, avós sem os netos, peças avulsas de uma mesma família –mas combativas no enfrentamento aos militares. O local é escolhido por um missionário norte-americano, Samuel (Daniel Contesse), no início dos anos 80, para “levar a palavra de Deus e a esperança”. Mas, no meio do caminho, ele se apaixona por uma das principais guerrilheiras do local, Gladys (Nathalia Aragonese), ou francesinha, seu nome de guerrilha. 

São muitos os componentes reais na ficção do diretor chileno Gonzalo Justiniano retratada no longa Cabras de Merda (2017), cuja exibição fez parte da programação do 28º Cine Ceará,  que acontece gratuitamente em Fortaleza até sábado, 11, e ainda não tem distribuidora no Brasil. Há o bairro combativo, a truculência e o horror da ditadura, o trabalho dos missionários estrangeiros, as famílias desmembradas e até algumas imagens dos confrontos entre militares e civis, captadas por ele mesmo, quando cobria a ditadura chilena para um canal de TV francês. Foi inclusive a partir desse material e dessa vivência que Justiniano produziu o longa. “Me interessava resgatar o direito à memória", disse ele, logo após a exibição do filme, em Fortaleza. "O desafio era contar coisas que todo mundo já sabia, que a ditadura foi ruim, que atiravam corpos ao mar, torturavam e matavam. Mas queria contar de forma a captar o espectador. Que ele pensasse sobre isso depois”.

O diretor escolheu então focar mais nos personagens e menos no fato histórico. A história da família de Gladys, do romance entre ela e o missionário, ironicamente apelidado de Tio Sam, e da relação que ele cria com o filho dela, o carismático Vlad (Elías Collado) foram o jeito encontrado por Justiniano para captar o espectador. “Queria contar a vida quotidiana dessas pessoas, o que era viver sob os códigos da ditadura”, conta. “Por isso o off era muito importante, havia muita coisa que não era dita, que as pessoas entendiam por meio dos gestos, do não-falado”.

Museu da Memória

Gonzalo Justiniano deixou o Chile fugindo da ditadura em 1976, aos 20 anos. Estudou cinema em Paris e em 1983 voltou ao país para filmar o regime de Pinochet nas ruas. Parte do material que tinha foi apreendido ainda durante o regime militar, e o que sobrou ele doou ao Museu da Memória, que fica em Santiago do Chile. O museu, dedicado ao resgate da memória do que ocorreu ao longo da ditadura chilena, e é a primeira e última imagem que passa em Cabras de Merda. "Tem gente que tem medo da memória", diz Justiniano. "Precisamos olhar para essas pessoas. Precisamos não aceitar que não tenhamos memória".

Para rodar Cabras de Merda, Justiniano afirma que não fez uma longa pesquisa de campo para captar esses gestos ou resgatar o histórico. Aproveitou o material e a vivência que já tinha do bairro e juntou com novas andanças pelo local. Do acaso, surgiu parte do elenco. "Um garoto soube que eu gravaria um filme ali no bairro, foi até mim e disse 'eu quero ser ator", conta o diretor. O único problema era que o garoto era ruivo. "Chilenos não são ruivos", diz Justiniano. "Mas aí eu percebi que havia muitos olhos azuis e cabelos vermelhos naquele bairro, pois alguns missionários de olhos azuis que ali passaram também deixaram, de certa forma, essas marcas", diz, brincando. O garoto, na época com oito anos, foi contratado para interpretar Vlad. Sua atuação é um espetáculo à parte. "Ele era o mais sério nas filmagens", recorda o diretor.

A repórter viajou à convite do Cine Ceará.

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