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O ódio aos pobres sai da escuridão

Senado espanhol votará pela inclusão da ‘aporofobia’ como agravante no Código Penal. Vários moradores de rua relatam as agressões que sofrem

Miguel Ángel Medina
Alberto, de 47 anos, no pórtico da Plaza Mayor de Madri, onde dorme.
Alberto, de 47 anos, no pórtico da Plaza Mayor de Madri, onde dorme.VÍCTOR SAINZ

“Há pouco tempo, três jovens entraram no terminal de caixa eletrônico onde durmo, na Gran Vía, e roubaram uma sacola com minhas coisas. Outro dia, bêbados vieram tirar dinheiro e me chutaram enquanto riam. Em outras ocasiões são insultos: ‘Olhe pra você, sujo de merda.’” Raúl, argentino de 53 anos, relata com voz pausada o desprezo e as agressões que sofre por dormir na rua. Sua história, comum a várias pessoas que pernoitam na Plaza Mayor de Madri, deixa claro que o recente caso de Benidorm — um grupo de ingleses pagou 100 euros (430 reais) a um mendigo para que tatuasse seu nome na testa — está longe de ser uma exceção.

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Segundo a Fundação Rais, entidade que luta contra a exclusão social na Espanha, uma em cada três pessoas nessa situação foi insultada ou recebeu tratamento vexatório, e esse tipo de notícia cada vez assume maior relevância. A filósofa espanhola Adela Cortina colocou nome ao fenômeno: aporofobia, o ódio ao pobre. Em setembro, o Senado espanhol votará um projeto de lei do Podemos para incluí-lo como agravante em caso de agressão e equipará-lo a outros crimes de ódio.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística, há 23.000 moradores de rua na Espanha. A Fundação Rais eleva essa cifra a 31.000, pois inclui os que nunca comparecem aos centros assistenciais. Todos eles são submetidos a um ódio intangível, mas muito real. “Dormir e viver na rua têm um componente de violência estrutural que é agravado pela violência direta da qual são objeto”, explica Gema Castilla, da Rais. Em 2016, a ONG apresentou um relatório sobre esse coletivo com conclusões aterradoras: quase metade dos sem-teto sofreu algum incidente ou crime relacionado com a aporofobia, em 80% dos casos mais de uma vez. E um em cada cinco foi agredido.

Jesús, num passadiço da Plaza Mayor de Madri, que divide com outros quatro sem-teto.
Jesús, num passadiço da Plaza Mayor de Madri, que divide com outros quatro sem-teto.VÍCTOR SAINZ

Alberto, 47, dorme sob os pórticos da Plaza Maior. Veste uma camiseta com a bandeira da Espanha, tem uma mala pequena, quase vazia, e se cobre com uma manta branca encardida. “Numa véspera de Ano Novo, eu estava dormindo num terminal de caixa eletrônico em Salamanca quando algumas pessoas se aproximaram e me deram um chute. Isso costuma acontecer quando chega um bêbado ou um drogado”, conta, com a voz grave. “Na Plaza Mayor é muito tranquilo. As pessoas estão acostumadas a nos ver. Há câmeras de segurança. Prefiro estar aqui e que me vejam, pois os moradores de rua são parte da realidade. Quero que me vejam”, lamenta.

“Um dia me deram um chute; outras vezes, foram insultos”, diz um morador de rua

Jesús, de 65 anos, vive numa passagem que conecta a Plaza Mayor com a rua homônima. “Um dia, eu caminhava pela rua Barquillo, porque havia combinado com o assistente social, e um homem me perguntou que horas eram. Quando respondi, ele de repente começou a me bater. Eu pedi que me deixasse em paz, mas me deu dois socos”, recorda. A passagem onde empilha seus papelões — que divide com outras quatro pessoas — desemboca na entrada do estacionamento e de um restaurante. “Às vezes passam pessoas violentas, que gritam e me insultam. Em outras, nos dizem que damos nojo, que temos que tomar banho. Mas é preciso seguir adiante do jeito que for”, admite.

Raúl posa com seus pertences nos pórticos da Plaza Mayor. 
Raúl posa com seus pertences nos pórticos da Plaza Mayor. VÍCTOR SAINZ

Adela Cortina, catedrática de Ética, publicou no ano passado um livro para batizar esse ódio: Aporofobia, El Rechazo al Pobre (Aporofobia, a rejeição ao pobre). “Os que incomodam são os pobres, os que não têm poder, os que parece que não podem nos ajudar a viver melhor e que trazem problemas. Criei o termo a partir do grego aporoi”, diz Cortina. Em sua opinião, “a pessoa sem casa é extremamente vulnerável, carece de um espaço de intimidade”. Daí a importância de realizar programas para evitar esse problema. A palavra teve repercussão: em 20 de dezembro passado, a Real Academia Espanhola a incluiu em seu Dicionário, e em 27 de dezembro a Fundação do Espanhol Urgente (Fundéu) a escolheu como a palavra do ano porque podia “ajudar a transformar a realidade”.

O Ministério do Interior espanhol inclui a aporofobia como um dos crimes de ódio: em 2016, registrou 10 denúncias por essa causa; em 2017, foram 11. “Quando um morador de rua é agredido, não tem um espaço seguro aonde ir. O agressor pode voltar e matá-lo. Por isso, a agressão não costuma ser denunciada. Mas existem muitos casos além dos contabilizados pelo Ministério do Interior. Basta ler as notícias da imprensa”, diz a porta-voz da Rais. “Além disso, também é ‘aporofobia’ que um sem-teto entre num bar e não seja atendido por ser pobre, ou que não o deixem usar o banheiro.”

O Podemos acredita que isso pode mudar com a inclusão da aporofobia como um agravante no Código Penal, a exemplo do que ocorre com outros crimes de ódio, como o racismo e a islamofobia. Assim, ano passado o partido apresentou uma moção no Senado que teve o apoio de todos os grupos de partidos (salvo o Foro Astúrias). Como o recurso ainda não se materializou, o senador Joan Comorera, da coalizão En Comú Podem, apresentou um projeto de lei — que será votado possivelmente em setembro — para conseguir o objetivo.

Violência contínua

“A Procuradoria-Geral, em seu relatório anual de 2015, já indicava a necessidade de incluir a ‘aporofobia’ como agravante. Acreditamos que, com esse projeto, resolveríamos uma omissão intolerável”, explica Comorera. De fato, em 2005 dois jovens queimaram viva uma mulher — Rosario Endrinal — que dormia num terminal de caixa eletrônico em Barcelona, e não foi possível aplicar nenhum agravante.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística da Espanha, 23.000 pessoas moram na rua

“Se os partidos apoiarem, [o projeto] passará ao Congresso (câmara de deputados) e a reforma poderia ser feita antes do fim do ano. E [o agravante] poderia ser aplicado em casos como o que acabamos de ver em Benidor”, afirma o senador. Porta-vozes do PP e do PSOE no Senado — que já votaram a favor da moção anterior — se mostram favoráveis à iniciativa, embora ainda precisem conhecer todos os detalhes. Um representante do Cidadãos na Câmara — o partido não tem senadores — diz que, se a reforma pune a discriminação, sua legenda também apoiará a iniciativa quando chegar à câmara baixa.

Enquanto isso, a condição de morador de rua continua penalizando seres humanos pelo fato de serem pobres. Que o diga Jesús Sandín, responsável pelo programa de pessoas sem teto da ONG espanhola Solidarios para el Desarrollo. “As pessoas que em situação de pobreza sofrem uma violência contínua que afeta a autoestima, a motivação e a maneira de estar no mundo”, afirma. Por isso, há 22 anos a ONG “gera um espaço de encontro horizontal a partir da igualdade, criando um vínculo afetivo e rompendo a solidão dos que moram na rua”. A iniciativa mobiliza 150 voluntários todo ano. “Não são vagabundos. Não são diferentes. A única coisa diferente é sua circunstância, e nós queremos mudar a maneira como a sociedade os vê”, diz Sandín. “Dar nomes às realidades sociais perversas, como a rejeição ao pobre, é fundamental para acabar com elas”, conclui Adela Cortina.

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