_
_
_
_
_
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Por que sobrou para o STF decidir a idade que seu filho deve entrar na escola

Supremo retoma hoje julgamento sobre norma do CNE que estipula 4 e 6 anos, completados até 31 de março, para entrada no ensino infantil e fundamental

ASCOM Secretaria da Educação do Estado da Bahia
Mais informações
Inger Enkvist: “A nova pedagogia é um erro. Parece que não se vai à escola para estudar”
Robótica, skate e ativismo: o que os rankings educacionais não dizem
Por que a Alemanha decide quais crianças aos 10 anos são aptas para ir à universidade

Cleuza é a última dos oito irmãos a deixar o Nordeste para procurar melhores condições de vida para sua família. Ao desafio do deslocamento físico da família, soma-se o desafio da reinserção social. Uma das primeiras providências é matricular os filhos na escola. No município de origem da família, a filha caçula, nascida em abril, frequentava o primeiro ano da pré-escola e passaria mais um ano na educação infantil. Ao chegar ao município de destino, foi informada que, pela regra de corte etário no município, que admite crianças nascidas até junho, a filha iria diretamente para o primeiro ano do ensino fundamental sem passar pelo segundo ano da pré-escola, conforme garantido constitucionalmente a todas as crianças.

A história fictícia de Cleuza deixa claras as consequências da falta de coerência administrativa na organização da matrícula nas diferentes redes de ensino. O impacto da inobservância de uma regra comum pelas redes de ensino é ainda mais grave se levarmos em conta que, de acordo com a PNAD 2009, 2 milhões de pessoas migraram de uma região do país para outra num período de 5 anos. Essa história vem se repetindo na vida real das famílias que migram ou mudam da rede de ensino pública para a privada e vice-versa, apesar de estarem vigentes as Resoluções nº 1/2010 e nº 6/2010 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE/CEB), que exigem que a criança tenha, para o ingresso na educação infantil e no ensino fundamental, 4 e 6 completos, respectivamente, até o dia 31 de março do ano de sua matrícula.

Alvo de intensa judicialização em torno de sua constitucionalidade, o imbróglio jurídico envolvendo as Resoluções do CNE/CEB, deve ter um fim nesta quarta-feira, 1º de agosto, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) concluirá o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 17 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 292. O Plenário do STF está dividido. Parte dos Ministros entende que o corte etário é inconstitucional por restringir o direito à educação. Outra parte argumenta que é constitucional por, além de garantir o melhor interesse da criança, ser necessária a definição de uma data para a matrícula das crianças no ensino fundamental, cabendo ao CNE, que é o órgão técnico especializado máximo do sistema educacional brasileiro, defini-lo e não ao Judiciário.

Movimentos da sociedade civil e governos defendem a obediência às Resoluções do CNE justamente como forma de prevenir a antecipação do ingresso no ensino fundamental, com a escolarização prematura das crianças de 5 anos. A literatura especializada apoia a orientação expressa na base nacional comum curricular definindo a educação infantil como etapa com identidade própria, na qual o educar e o cuidar são indissociáveis, e as interações e a brincadeira são eixos centrais para o desenvolvimento adequado da criança nessa faixa etária. A criança que completa 6 anos em data posterior a 31 de março não terá o acesso restringido à educação, mas participará de um entorno escolar favorável ao seu desenvolvimento. Ao identificar uma relação positiva entre as notas dos alunos e a idade relativa dos colegas, estudos nacionais e internacionais endossam que impor uma estrutura de ensino que não corresponde ao estágio de desenvolvimento da criança levará a déficits educacionais ao longo da vida escolar. Crianças mais velhas superam seus colegas um ano mais novos.

Mas isso não é tudo. Estudo realizado pelo movimento Todos Pela Educação, a partir dos dados do Censo Escolar e da Prova Brasil, mostra o impacto da mudança na idade de ingresso ao ensino fundamental no desempenho na Prova Brasil, no 5º ano do ensino fundamental. Realizar a prova com um ano de idade a mais pode se traduzir em um aumento de 17-20 pontos na proficiência média. Ou seja, redes de ensino que determinaram uma data de corte de espectro mais amplo, admitindo crianças mais novas no ensino fundamental, foram penalizadas nos resultados nas avaliações nacionais de larga escala, como a Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) e a Prova Brasil. Esse estudo revela, ainda, que as diferentes datas-limite nos Estados escondem o verdadeiro grau de desigualdade na proficiência das crianças e impossibilitam a adoção de medidas de redução das disparidades identificadas na proficiência das crianças entre as escolas dos diferentes Estados brasileiros. Não podemos esquecer que 55% das crianças brasileiras não estão plenamente alfabetizadas aos 8 anos de idade e esse déficit de aprendizagem se projeta nas etapas subsequentes.

Além de ser um critério fundamental para a harmonização dos sistemas e redes de ensino, o corte etário permite a comparação dos resultados dos Estados com maior acurácia. Se ainda considerarmos que no Brasil as avaliações de larga escala, como a Prova Brasil, são utilizadas como critérios na distribuição de apoio técnico e financeiro a Estados, Municípios e escolas, a falta de um critério uniforme nacional para a data de corte ao ingresso no Ensino Fundamental prejudicará a homogeneidade das condições de acesso aos recursos disponíveis.

Espera-se que o STF possa adotar uma decisão que, além de garantir o melhor interesse da criança, permita a correção das iniquidades entre as escolas dos diferentes Estados brasileiros e evite que histórias como a de Cleuza venham a se repetir.

Alejandra Meraz Velasco é Mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Chicago e sócia-efetiva do Todos pela Educação.

Alessandra Gotti é Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP. É fundadora e Presidente Executiva do Instituto Articule e sócia-efetiva do Todos pela Educação.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_