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“Doença mental materna ainda é associada a ser ‘uma mãe ruim”

Psicólogos apontam para riscos dos preconceitos em torno dos transtornos como depressão pós-parto. Uma em cada cinco mulheres experimenta transtorno do estado de ânimo na gravidez ou maternidade

Muitas mães escondem os sintomas de tristeza por falta de apoio do seu entorno social.
Muitas mães escondem os sintomas de tristeza por falta de apoio do seu entorno social.Getty

Associações e organizações de países de todo o mundo estão se mobilizando para que a primeira quarta-feira de maio de todos os anos seja considerada o Dia Mundial da Saúde Mental Materna. Uma reivindicação organizada em torno da Global Alliance for Maternal Mental Health e que busca pôr em primeiro plano um aspecto importantíssimo da maternidade que muitas vezes fica invisível e é minimizado pela sociedade. Os transtornos mentais relacionados à maternidade são também muitas vezes diretamente escondido pelas próprias mães, submetidas à crença de que a maternidade só pode trazer consigo sentimentos relacionados com a felicidade. Daí a importância de enfatizar o problema neste Dia das Mães, celebrado no Brasil próximo domingo, 13 de maio.

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Qualquer mulher, independentemente de sua cultura, idade, nível de renda e etnia, está exposta a desenvolver transtornos do humor e de ansiedade perinatal que podem aparecer a qualquer momento da gravidez ou durante o ano seguinte ao parto. Não por acaso, segundo dados da própria Global Alliance, estima-se que em muitos países até uma de cada cinco novas mães experimenta algum tipo de transtorno do estado de ânimo e ansiedade perinatal (PMAD), uma cifra que aumenta no caso de perdas perinatais.

“É necessário estabelecer o Dia Mundial da Saúde Mental Materna por muitos motivos, bem mais do que acreditamos, já que a saúde mental materna afeta diretamente a mulher, mas também o bebê, o casal e a família. Na realidade, a saúde mental das mães é um pilar necessário para o desenvolvimento e o crescimento saudável dos filhos. Apesar disso, na sociedade existe uma idealização da maternidade junto com um estigma da doença mental materna, associado com ser uma mãe ruim, o que chega a impedir as mulheres que se sentem angustiadas, incapazes, tristes, culpadas ou com medo de comentar isso com sua família ou profissionais de referência”, reflete Isabel Echevarría, psicóloga perinatal e membro do grupo de trabalho de Psicologia da Ordem Oficial de Psicólogos de Madri (COP, na sigla em espanhol), que aderiu a essa iniciativa mundial.

Um tema oculto e minimizado

Para a psicóloga, a problemática da saúde mental materna se ampliou nos últimos anos. Um aumento para o qual, segundo ela, confluem vários motivos: “Cada vez se tem mais consciência de sua existência, o que torna mais fácil para os profissionais detectar o problema, elevando assim o número de diagnósticos. Mas é preciso acrescentar que a sociedade em que vivemos dificilmente é compatível com o ritmo biológico da gravidez e da lactância, existindo pouca rede de apoio para as mulheres, que na maioria dos casos se encontram sem um grupo no qual se apoiar e com o qual compartilhar, o que aumenta o nível de estresse e mal-estar”.

"A sociedade em que vivemos dificilmente é compatível com o ritmo biológico da gravidez e da lactância, existindo pouca rede de apoio para as mulheres"

Esse aumento dos casos oculta, porém, outra realidade preocupante. Segundo estimativas, 70% das mulheres escondem ou minimizam seus sintomas, algo que, de acordo com Gabriela González, psicóloga perinatal e coordenadora do grupo de trabalho de Psicologia Perinatal da COP de Madri, poderia ser comparado com a relação que muitas mulheres têm com seu corpo, condicionada pelos modelos e as expectativas sociais: “Neste contexto e nesta etapa da vida, pensar a saúde mental leva a uma fratura que não pode ser contida no social, mas tampouco em nível subjetivo, que se evidencia no sofrimento de cada mãe que vê a si mesma como imperfeita, não suficientemente boa ou sem a capacidade necessária para exercer sua função materna de acordo com seus próprios modelos idealizados e, em particular, no que diz respeito a seus desejos, ansiedades e temores”.

O entorno das mães é mais uma circunstância que não contribui com a prevenção e o tratamento do problema. De modo geral, a sociedade ainda está pouco acostumada a lidar com sintomas de tristeza nas mães, quando se espera delas alegria, e demonstra ser incapaz, em muitas ocasiões, de lhe dar o apoio necessário, sendo sempre mais propensa a minimizar os problemas e não lhes dar importância. Para a psicóloga perinatal Gabriela González, as conotações negativas e as atitudes do entorno social e familiar diante do estigma da saúde mental “constituem uma barreira pouco permeável no que diz respeito a gerar espaços saudáveis que permitam incorporar essa problemática”. Daí que em muitas ocasiões problemas como a depressão pós-parto sejam vivenciados pelas mães em uma clandestinidade social e cultural, marcada pelo “traçado de uma cenografia subjetiva caracterizada pelo segredo, a culpa, a insegurança, a condenação moral, o medo e a solidão”.

Estima-se que cerca de 70% das mulheres escondem ou minimizam seus sintomas por medo do estigma social em torno de ser mãe

Para Cristina Castaño, psicóloga perinatal e membro também do grupo de trabalho da COP de Madri, o fato de as mães não terem a possibilidade de falar sobre o que estão passando e optarem por ocultar “não faz com que o problema desapareça”. Isso sempre contribui para enraizá-lo e agravá-lo, sobretudo quando se fala de um verdadeiro problema de saúde mental que interfere na vida normal da mulher, em sua capacidade para desenvolver o novo papel de mãe e no estabelecimento do vínculo com seu bebê: “Se o problema está aí, é importante nomeá-lo para poder intervir quanto antes. Deixar passar o tempo não o fará desaparecer. Pelo contrário, dará origem a mais dificuldades e tornará mais complexa a intervenção”.

Nesse sentido, Castaño destaca a importância de “dar um espaço à mulher, acompanhá-la e apoiá-la” para que possa levar adiante seu papel de mãe do melhor modo possível, já que as consequências de não intervir adequadamente ou de não receber os apoios necessários acabam repercutindo em toda a família. “Repercute tanto na saúde mental de seus membros como no estabelecimento de um vínculo saudável com o bebê, o que pode afetar o desenvolvimento de sua capacidade cognitiva e até dar lugar a problemas de saúde mental”, explica.

Pôr o foco na saúde mental materna

Em alguns hospitais de países como Reino Unido, França e Austrália já existem as chamadas Unidades Mãe-Bebê, nas quais as mães e seus bebês permanecem internados juntos para que as primeiras possam receber seu tratamento sem alterar ou dificultar o estabelecimento do vínculo com os filhos. Um sistema parecido foi colocado em prática de modo pioneiro na Espanha no Hospital Clínic de Barcelona, onde foi criada uma unidade mãe-bebê para atender a mães com transtornos mentais dentro de um espaço terapêutico confortável no qual se garante a continuidade do atendimento da mãe e do bebê e a manutenção do vínculo. Apesar desse grande passo, Cristina Castaño considera que “na Espanha a realidade é que ainda não se dá atenção suficiente à saúde mental materna”, como demonstra o fato de que, salvo exceções, esta condição “ainda não está incluída no sistema de saúde”.

Nesse sentido, para a psicóloga seria “muito importante” que a saúde mental materna estivesse incluída “de forma rotineira” tanto no atendimento básico como nos hospitais, como parte do acompanhamento específico da gravidez: “Se os psicólogos perinatais pudessem estar presentes desde o princípio poderíamos detectar certos fatores de risco, certos sinais que nos indicam que essa mãe necessita de apoio, e poder intervir e facilitar todo o processo”.

Isabel Echevarría, por sua vez, concorda com a necessidade de criar mais unidades mães-bebê, de incluir nos cursos de preparação para o parto tudo o relacionado com a saúde mental e de ajudar a difundir a imagem real da maternidade. Também destaca a necessidade de destinar mais recursos a esta área “para formar todos os profissionais relacionados com a maternidade sobre a importância de respeitar o ritmo e as necessidades das mulheres e dos recém-nascidos, segundo endossam as pesquisas científicas, recordando que a gravidez não é uma doença, que o corpo da mulher está preparado para gestar, parir e criar, e que os profissionais estão lá para assistir e acompanhar, intervindo somente quando há complicação”.

Cultura para ajudar a acabar com o estigma

“As mães não escrevem, estão escritas”, afirmava a professora da Universidade Harvard Susan Rubin Suleiman. E essa ausência do “eu” materno contribuiu para generalizar uma imagem distorcida e idealizada da maternidade, que muitas vezes é um segredo que as mães carregam nas costas quando a realidade vai além de toda a imagem que poderia ter sido criada com a experiência.

Por sorte, livros como The Mother Knot (O nó materno), Jane Lazarre, ou La Femme Gelée (A mulher gelada), de Annie Ernaux, e de romances como No mama, no (Não mamãe, não), de Verity Bargate, contribuíram para normalizar uma maternidade mais vívida e distante do ideal canônico e pôr sobre a mesa sem tabus nem preconceitos a saúde mental materna. Um salto ao qual também se somaram outras disciplinas artísticas. Um exemplo é o da psicóloga e fotógrafa de Oviedo Íris G-Meras, premiada no XIII Encontro Fotográfico de Gijón (Espanha) e ganhadora da bolsa de estudos profissional do Seminário de Fotografia e jornalismo de Albarracín por seu trabalho fotográfico Puerpério, um conjunto de autorretratos da própria maternidade.

“Este projeto surge da necessidade de compartilhar uma experiência neste período complexo da vida, dadas as carências no relato que tradicionalmente nos apresentaram. Para mim contribuiu com muitas coisas em nível profissional, mas acho que o mais bonito surge quando, ao mostrar as imagens, você se conecta com muitas pessoas, homens e mulheres com os quais compartilha experiências. Você reflete e aprende”, diz Íris, que afirma que suas experiências de puerpério foram diferentes com cada um de seus filhos, embora todas tenham tido algo em comum; “Sempre foram experiências muito intensas, profundas e viscerais que, graças a este trabalho, entre outras, muitas outras coisas, acho que estão sendo resolvidas de forma muito positiva”.

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