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A história das operações e planos de segurança no Rio: três décadas de fracassos

Aposta pelo uso da força e apelo aos militares vem sendo constante no Estado desde 1992. UPPs representaram tentativa estruturante e de longo prazo, mas também falhou

Militares patrulham o aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, no último sábado, um dia após a intervenção federal no Estado.
Militares patrulham o aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, no último sábado, um dia após a intervenção federal no Estado.AFP
Felipe Betim

Os holofotes sempre se centram no Estado e na cidade do Rio de Janeiro quando o assunto nacional é segurança pública — apesar de que em outras unidades da federação as taxas de homicídios sejam inclusive maiores, segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Durante ao menos três décadas, às vezes com maior ou menor intensidade, o Rio vem sendo palco de fracassadas operações policiais em favelas e periferias que, segundo especialistas da área, mais servem para encher os noticiários de imagens espetaculares do que para alcançar resultados efetivos. Uma vez ou outra também aparecem por aqui as Forças Armadas, seja nas ruas da nobre Zona Sul para dar uma sensação de maior segurança, seja para dar apoio às operações policiais. Grandes planos para conter a violência no Rio foram anunciados, sendo o último deles o das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Todos incluíam o uso ostensivo da força e todos, seja a curto ou médio prazo, fracassaram.

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Com a inédita intervenção federal de caráter militar decretada pelo presidente Michel Temer (MDB), abre-se um novo capítulo na história das tentativas de estancar a violência no Rio e resolver um problema que possui raízes históricas e estruturais. Inédito porque, apesar do uso das Forças Armadas no Rio em outras ocasiões, é a primeira vez desde a redemocratização que o Governo federal intervém diretamente no estadual, retirando deste suas competências na área de segurança pública e nomeando um interventor federal — neste caso, o general do Exército Walter Souza Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste e, agora, responsável máximo pelas polícias Militar e Civil, Corpo de Bombeiros e da Administração Penitenciária fluminenses. Cabe ao general, e não mais ao governador Luiz Fernando Pezão (MDB), tomar todas as medidas que achar necessárias para conter o crime no Rio, incluindo o domínio das facções criminosas de alcance nacional.

A crise na segurança pública fluminense vem de décadas e os fatores são múltiplos, segundo vários especialistas: expansão do crime organizado em áreas abandonadas pelo setor público, falta de uma política séria de habitação, corrupção policial, sucateamento da capacidade investigativa da Polícia Civil, precarização da Polícia Militar, aposta pela política de guerra às drogas...

"A história da criminalidade no Rio começa lá nos anos 70, quando a cocaína começa a se expandir. Entramos pelos anos 80 e 90 com o tráfico vai aumentando seu domínio pela cidade. No meio desse caminho aparece o fuzil nas mãos dos traficantes, e depois a polícia acompanha e adota o fuzil também. Depois temos uma onda sequestros que deixou a cidade virada de cabeça pra baixo e as facções foram se consolidando nesse período", explicou Fernando Veloso, ex-chefe da Polícia Civil, durante o evento Brasil do Amanhã - Segurança Pública realizando na segunda-feira. "E chegamos nos anos 2000 com as UPPs, quando todas as esperanças se acenderam e todos nós achávamos que tínhamos achado o caminho. Parece que não", conclui ele, durante seu breve relato histórico.

Cabe então aqui fazer um breve apanhado sobre como, durante esse período, os governos Federal e Estadual vem tentando lidar com o assunto — ao menos aos olhos da opinião pública.

Redemocratização e Rio-92

O início da redemocratização e a volta das eleições para governador, ainda no início dos anos 80, coincidiu com o aumento do crime organizado e da sensação de insegurança no Estado do Rio, como explicou Veloso acima. Durante as eleições para o Governo estadual de 1982, da qual saiu vitorioso, Leonel Brizola focou sua campanha em educação e segurança pública, tratando o primeiro ponto como solução para o segundo. Tentou uma abordagem menos repressiva nas favelas e subúrbios, focando nas causas da criminalidade, e apostou por combater os esquadrões de extermínio da polícia. Mas sua política de segurança não gerou os resultados esperados. Nas eleições de 1986, o então candidato Wellington Moreira Franco — hoje ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência e um dos idealizadores da atual intervenção federal — ganhou as eleições estaduais prometendo que acabaria com a violência em seis meses. "Nós vamos enfrentar os grupos de crime organizado, custe o que custar e doa a quem doer, que eu sou intransigente", disse na época. No final de seu governo, em 1991, a taxa de homicídios no Estado havia aumentado para 60,3 mortes para cada 100.000 habitantes, segundo dados da Secretária Estadual de Segurança. Traficantes já usavam fuzil, armamento que passou a ser usado pela Polícia Militar logo depois.

Em 1992, o Rio de Janeiro sediaria a conferência da ONU sobre meio ambiente, a chamada Rio-92, que foi realizada entre os dias 3 e 14 de junho. O então presidente, Fernando Collor, assinou uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e enviou tropas federais para ajudar na segurança pública do Rio. Homens do exército, jipes e tanques passaram a fazer parte da paisagem urbana e ficaram estacionados sobretudo em ruas onde passavam as delegações estrangeiras. O esquema contou com a presença de 17.000 homens e teve como um dos alvos as favelas da Rocinha e do Vidigal. A partir de então, todos os presidentes democraticamente eleitos passaram a usar este dispositivo para acionar as tropas.

Os anos 90 e 2000

Os índices de violência não paravam de piorar e, em 1994, a taxa de homicídios no Estado atingiu um pico de 64,8 mortes por 100.000 habitantes, segundo dados da Secretaria Estadual de Segurança. Foi nessa época que o então governador Nilo Batista, substituto de Leonel Brizola, que havia renunciado ao seu segundo mandato para concorrer à presidência, assinou um convênio com o Governo Itamar Franco na área de segurança pública. O acordo subordinava a estrutura policial do Estado ao Comando Militar do Leste. O então general Câmara Senna ficou responsável por comandar um órgão central que coordenava e planejava as ações das polícias Militar e Civil, da Defesa Civil e da Secretaria Estadual de Justiça, segundo noticiou na época o jornal O Globo.

Seis meses depois, após a posse do novo governador Marcello Alencar (PSDB), em 1995, foi deflagrada a Operação Rio II. Mais uma vez, o Comando Militar do Leste, chefiado na época pelo general Abdias Ramos, mobilizou 20.000 homens para levar a cabo um pacote de medidas elaboradas com o fim de conter a onda de sequestros e "ampliar as propostas para combater o crime organizado como um todo", segundo explicou o então ministro da Justiça, Nelson Jobim. A ação conjunta contou com Exército, Receita Federal, Polícias Federal, Civil, Militar e Rodoviária Federal, além de Marinha e Aeronáutica.

Ainda que as taxas de homicídio tenham diminuído nessa época, variando entre 54 e 45 mortes para cada 100.000 habitantes, os problemas de segurança pública não arrefeceram. Voltaram a piorar no início dos anos 2000 e atravessaram os governos de Anthony e Rosinha Garotinho, além dos meses em que Benedita da Silva esteve no lugar do primeiro, em 2002, ano de eleições gerais. Favelas do Rio tinham chefes do tráfico que atuavam no varejo de drogas e a lógica de então era a de enfrentamento a partir de operações da Polícia Militar paliativas. Benedita chegou a dizer na época: "Hoje o que nós estamos mais uma vez fazendo é criando ações emergenciais para combater uma situação que está ainda localizada".

UPPs e milícias

Foi só quando o peemedebista Sérgio Cabral Filho assumiu o governo do Estado, em janeiro de 2007, que uma solução estruturante e de longo prazo para a segurança pública passou a estar em cima da mesa. As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) foram inauguradas no final de 2008 com uma operação no morro Dona Marta, no bairro de Botafogo. A estratégia, que logo foi replicada em outras comunidades, consistia em expulsar o tráfico e instalar bases da Polícia Militar com agentes de preferência novos, sem antigos vícios da corporação, e treinados para manter uma relação de proximidade com os moradores do local. A ideia, segundo dizia-se, era primeiro fazer uma ocupação policial da favela e, paralelamente, levar serviços públicos e obras de saneamento. Os tiroteios cessaram em comunidades, atividades econômicas floresceram e as taxas de homicídio diminuíram em todo o Estado, chegando a 28,7 mortes para 100.000 habitantes em 2012. "Isso aconteceu porque a polícia parou de trocar tiro. Quem é o administrador da morte? O Estado. A polícia entrava para impedir disputas entre facções, mas ela depois passou de produzir o confronto e a ocupar o território. Mas o efeito disso é provisório, porque há um rearranjo da economia criminosa", explica a antropóloga Jaqueline Muniz, especialista de segurança pública da UFF.

Não demorou para que o programa apresentasse suas falhas. A segunda parte, que incluía obras de infraestrutura e serviços públicos de qualidade, nunca se concretizou. A relação entre moradores e policiais se manteve tensa e logo alguns abusos se fizeram evidentes. Em julho de 2013, o pedreiro Amarildo foi detido, torturado e morto por policiais da UPP da favela da Rocinha. Seu caso foi repercutido nacionalmente e internacionalmente. Além disso, as UPPs se mostraram de fácil implementação em favelas pequenas como o Vidigal e Dona Marta, mas de difícil aplicação em outras maiores como a própria Rocinha e o Complexo do Alemão, ambas com cerca de 100.000 habitantes. Foi nesta última comunidade que, em 2010, uma ambiciosa megaoperação envolvendo a Polícia Militar e as Forças Armadas tentou expulsar o tráfico e instalar uma UPP. O plano para o Alemão nunca foi cem por cento bem sucedido: tiroteios e abusos continuaram sendo parte da rotina dos moradores, tendo se intensificado nos últimos dois anos.

Uma das críticas recorrentes dos especialistas e da oposição ao programa das UPPs é que ele focou nas favelas próximas dos principais pontos turísticos do Rio e das áreas nobres da cidade — que, do asfalto, enxergou uma melhoria na segurança. Paralelamente, dizia-se que territórios das periféricas Zona Norte e Zona Oeste cidade, além dos municípios da Baixada Fluminense, foram abandonados à própria sorte.

Foi também nessa época que as milícias entraram em cena. Elas consistem em agentes do Estado, como policiais e bombeiros, que controlam determinado território e serviços como o fornecimento de gás. Políticos importantes do Rio chegaram a dizer no passado que elas eram uma espécie de proteção comunitária, mas logo ficou claro o regime de terror que era implantado nesses territórios e a relação umbilical com esses políticos. Cabia a milicianos, por exemplo, autorizar ou não a distribuição de panfletos de campanha ou comícios em determinados bairros. Muitos deles inclusive eram deputados estaduais ou vereadores. As milícias foram alvo de uma CPI na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em 2008, comandada pelo deputado estadual Marcelo Freixo, e muitos milicianos chegaram a ser presos e condenados. Mas o problema nunca deixou de existir.

O Rio dos grandes eventos

O projeto das UPPs foi se enfraquecendo à medida que seus problemas ficavam evidentes e a crise financeira do Estado aumentava. Paralelamente, o Rio passou a abrigar grandes eventos, como a Jornada Mundial da Juventude, em 2013, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Para todos, a presidência da República, chefia nesse período por Dilma Rousseff (PT), emitiu Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para que as Forças Armadas apoiaram a segurança no Rio. Entre abril de 2014 e junho de 2015, militares ocuparam o Complexo da Maré a um custo mínimo estimado de 350 milhões de reais, mas que pode ter chegado a 600 milhões, para os cofres públicos. "Com 10% daquilo, 3,5 milhões de reais, você restruturava as áreas de inteligência e investigação, que são baratas. Capacitaria policiais e desenvolveria programas de prevenção situacional e social na favela. E com isso conseguiria um impacto maior na economia criminosa", explica a antropóloga Muniz. "A gente está gastando muito dinheiro para pouco resultado e pouca operacionalidade. E por isso eu cobro os relatórios. Qual é a taxa de êxito? A cocaína ficou mais cara? Qual é o efeito na economia criminosa? Não está tendo efeito e não terá".

Em 2016, milhares de homens do exército e da Força Nacional patrulharam as ruas do Rio enquanto aconteciam os Jogos Olímpicos. A sensação geral era de segurança, enquanto que nas favelas e subúrbios a violência não cessou durante um minuto. Finalmente, no segundo semestre de 2017, o Governo Temer enviou mais uma vez os militares. "Gastou-se 10 milhões de reais na Rocinha para apreender algumas armas", lembra Muniz. Com o projeto das UPPs em decadência, as operações policiais de caráter paliativo voltaram aos noticiários, enquanto a taxa de homicídios aumentava mais uma vez para 40 mortes para 100.000 habitantes no ano passado. E assim chegamos a 2018, com uma intervenção federal que, embora de caráter inédito, tem muitas semelhanças com outras medidas tomadas ao longo das três décadas passadas.

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